Quando comecei a me embrenhar na literatura polonesa contemporânea, entrei em contato com um universo imenso de informações. Pensando que é um país relativamente pequeno (apesar de grande para os padrões europeus) e com um idioma pouco difundido, é espantosa a sua quantidade de escritores. Quantidade, no entanto, nem sempre significa qualidade. E foi difícil saber por onde começar.

Acabei optando por Branco Neve, Vermelho Rússia, da jovem Dorota Masłowska – li boas coisas a respeito, a capa me chamou a atenção. Felizmente, o livro é realmente bom (apesar de muitos poloneses discordarem).  Mas eu acabei deixando várias coisas de lado.

Uma delas foi Prawiek i inne czasy, de Olga Tokarczuk. Acabei deixando pra lá porque as poucas coisas que achei a respeito falavam sobre ser um best seller e sobre aspectos religiosos, que chegavam a incluir anjos. Pareceu-me uma espécie de A Cabana com esteróides.

Com o tempo, porém, eu li outras coisas de Tokarczuk, textos menores, e essa impressão me pareceu inverossímil. Aliás, essas coisas que eu li a respeito me pareceram inverossímeis. Foi então que decidi arriscar: parecia-me, afinal, que eu tinha uma falsa impressão baseada em informações erradas.

E posso dizer que não me arrependi. Ao contrário: se existe algum arrependimento, é o de não ter lido Prawiek antes.

Toda a ação se passa nos arredores da pequena vila de Prawiek. Circundam-na uma floresta, a cidade de Taszów, a estrada para Kielce e dois rios, o rio Branco – de águas calmas e rasas –  e o rio Negro – de correnteza forte e que chega a transbordar em certas épocas do ano. Seria um vilarejo polonês comum, não fosse o fato de ficar no centro do universo e de que cada uma das fronteiras da cidade é guardada por um anjo.

Sim, o livro tem algo de religioso que é bastante forte e importante. Mas não é uma religiosidade católica e piegas, como eu temia: é algo um tanto quanto místico, que me parece mais uma espécie de mitologia Hassídica aplicada ao cristianismo, com toques jungianos – existe um quê de inconsciente coletivo sempre à espreita. Ali, a dúvida e o rancor parecem ser a força motriz da relação entre os homens e Deus.

E existe algo ainda maior que Deus, do qual nem ele pode escapar. É o tempo. Não é a toa que os capítulos correspondem, cada um, ao tempo de um personagem ou elemento diferente. “O tempo de Izydor”, “O tempo de Misia”, e também “O tempo de Deus”, “O tempo dos fungos”, “O tempo das coisas em quartetos”.

Existe uma história mais ou menos estruturada, que corre ao longo de praticamente três gerações dos moradores de Prawiek e de Taszów. Tudo começa com a partida de Michał Niebieski para a Primeira Guerra Mundial. Acompanhamos, então, sua esposa, sua filha, seus vizinhos, seus amigos, alguns desconhecidos, o fantasma de um bêbado que morreu afogado, um homem que perdeu-se na floresta e abandonou sua humanidade, uma louca com certos poderes místicos e uma velha que odeia a Lua, entre outros. Essas pessoas nascem, morrem, casam-se, traem-se, amam-se e odeiam-se. Passam pelas duas grandes guerras, pelo comunismo e pela libertação da Polônia.

Enquanto isso, o nobre Popielski joga um jogo de tabuleiro com estranhas instruções, que incluem poder prosseguir apenas depois de sonhar ser um cachorro. O jogo parece ter alguma coisa a ver com a organização do universo: existem oito círculos, oito mundos, e em cada um deles as pessoas, os animais, as plantas, os fungos, Deus e o tempo se relacionam de modo diferente.

Várias vezes eu falo sobre o tempo na resenha. Talvez porque seja ele o elemento essencial. Mais do que qualquer personagem, é o tempo o protagonista. Pois em Prawiek e inne czasy é a sua passagem inexorável que cria todo o movimento. A história, global e pessoal, é apenas uma de suas consequências. Ninguém é esmagado, ninguém é arrastado: as coisas simplesmente obedecem a um ciclo em que o final é o envelhecimento e a morte, apenas vivem, a despeito das circunstâncias.