O senso comum geralmente encara mitos e mitologia mais ou menos como sinônimos de lendas: histórias fantásticas envolvendo deuses, monstros e heróis. Academicamente, porém, essa definição não é válida. Na folclorística é que encontramos a maior semelhança: o mito é uma história sagrada, ambientada em tempos ancestrais e que tentam, de alguma maneira, explicar o mundo e o ser humano. Em outros campos, porém, esse significado não é utilizado.
É o caso da semiologia, em especial do filósofo francês Roland Barthes. Em seu livro Mitologias, ele as define como algo muito mais complexo e vivo: são sistemas de símbolos que nos são transmitidos pela sociedade em que nos inserimos e que são fundadores – ou, ao menos, sustentadores – de tradições e comportamentos. São sistemas que distorcem a percepção da realidade para justificar certos comportamentos.
É verdade que, dito assim, possa parecer algo demasiado complicado. Mas não é. Eis um exemplo (que não é oferecido por Barthes, mas por mim): algumas semanas atrás uma revista semanal de variedades publicou uma matéria de capa em que apontava o cantor Michel Teló e sua pérola “Ai se eu te pego” como a maior tradução da cultura popular brasileira. Enuncia-se, assim, um mito: a cultura brasileira e popular encontra sua expressão máxima com a tal música – que, ao ser analisada com um mínimo de empenho, mostra-se muito mais pobre musicalmente e liricamente do que qualquer cantiga de roda ou marchinha de carnaval, e que dificilmente é uma expressão verdadeiramente popular, já que Teló é parte da classe dominante (que, de maneira alguma, gosta de considerar-se como parte do que é “popular”) e a música certamente tem o dedo de produtores. Essa afirmação deforma o sentido a expressão “cultura popular brasileira” e justifica todo um universo de rejeição ou aceitação de valores.
De modo bem mais eloquente do que eu, Barthes recheia o livro com exemplos de mitologias. Nenhuma delas retirada da nossa realidade, é verdade: são textos sobre a França no começo dos anos 1950. É curioso, porém, como a transposição de muitos desses mitos para a nossa realidade é quase automática, bastando que substituamos o vinho pela cerveja, o bife com batatas pelo churrasco, as revistas Elle e Match por outras que circulem por aqui.
Em um segundo momento o autor faz um trabalho um tanto mais árduo, mas que serve de base para todo o sistema que utiliza no livro: ele explica, semioticamente, o funcionamento e as razões de ser do mito.
Enfim, Mitologias é um livro que pode assustar, sim. Mas esse medo que as pessoas costumam ter da filosofia e de áreas afins não é nada mais do que um outro mito. Trata-se de uma obra bastante acessível e que elucida muitas coisas a respeito do mundo em que vivemos. Conheço muita gente que talvez não concorde com Barthes, mas isso não as impede de entenderem o que ele diz, antes de poder concordar ou não.
Barthes sempre é uma leitura válida. Preciso ler mais livros dele, inclusive Mitologias. O engraçado é que, como percebi quando fiz uma matéria sobre mitologia, o povo que estuda mito não se interessa por essa visão diferente dele. Uma pena.
Ah, e o exemplo do Teló foi bem pensado. Curti.
Apesar da nacionalidade (hahaha) ele é bem bom. Tenho lá algumas ressalvas com certas coisas que ele diz, mas ainda assim acho que ele é um dos teóricos mais interessantes que tem por aí.
E que bom que o exemplo ficou bom. Eu tive medo de só truncar o texto com isso. 🙂
Com certeza.
É um livro muito elucidativo e tem a ver tanto com a filosofia quanto com a história, afinal historicizar e ‘desnaturalizar’ (ou desmitificar) é justamente reconhecer a historicidade de algo.
Só li alguns ensaios desse livro, quero ler os demais. Muito boa a resenha e até que achei você bem contido ao falar do Michel Teló, acho que podia ter mais ‘rage’ nesse sentido, hehe.
Barthes pretendia mostrar que os mitos não estavam pesentes apenas nas sociedades ditas não-civilizadas. Ou seja, que não era assunto apenas para antropólogos. Entendendo mito aqui, claro, como uma explicação sobre a realidade que não é comprovada científicamente. Ancorado no conceito de ideologia de Marx, mostrou que as classes dominantes se valem de mistificações sobre assuntos cotidianos (não apenas sobre os grandes temas clássicos da política) para dar prosseguimento a sua dominação.
Esse livro foi considerado muito importante desde seu lançamento, mas o próprio Barthes reconhecia que faltava um plano de ação para lidar com essa mitificação da realidade.
Ótima resenha para um livro sempre útil e atual.
Boa tarde, conte mais por favor! Estamos em modo de desespero.
Agradeço desde já.
Olá amigos. Estou fazendo um trabalho na disciplina de Semiótica que consiste em analisar a obra de Barthes e de seguida abordar um tema que seja uma mitologia nos dias de hoje. Podem dar-me sugestões de temas que são mito nos dias de hoje?
Amei o post! Esclareceu bastante coisa sobre o livro e atiçou minha curiosidade em lê-lo. Parabéns e obrigada!