Uma das passagens mais conhecidas da aventurosa vida de Ernest Hemingway foi sua participação num dos processos mais violentos do século XX, a Guerra Civil Espanhola, considerada por muitos como uma espécie de prelúdio para a Segunda Guerra Mundial. O conflito opôs republicanos e fascistas – além de uma miríade de grupos e partidos – e chacoalhou a sociedade espanhola e europeia num conflito em que os ânimos e os atores belicosos que viriam a se confrontar em 39 já mostravam seu potencial destrutivo e anunciavam a catástrofe que se estabeleceria em âmbito global até, pelo menos, 1945. E isso sem contar toda a densa tessitura espiritual em torno dos enfrentamentos que ali tomaram lugar.

O estilo hard-boiled (expressão criada pelo autor que significa ‘rústico’ ou ‘calejado’) nos põe constantemente em contato com a realidade vivenciada pelo autor de forma direta, sem grandes abstrações ou encriptamento literário profundo. A intenção de Hemingway parece às vezes ser a de “simplesmente” contar experiências suas numa espécie de flerte entre o relato e a ficção, que, aliás, lhe custaram uma resistência por parte da Academia Sueca antes de ser laureado em 1954 com o Nobel de Literatura.

O protagonista da história é Robert Jordan, ex-professor acadêmico que se junta às fileiras republicanas por afinidades ideológicas e idealistas e passa a lutar, ao lado de um grupo bastante pitoresco de espanhóis, na Espanha dividida entre as duas frentes em choque.

A missão de Jordan é explodir uma ponte e inviabilizar a utilização dela pelos fascistas. Porém, como é de se esperar, o caminho que se interpõe entre Jordan e a ponte – entre o protagonista e seu objetivo – é o conjunto de eventos-percalços que, ao fim e ao cabo, constitui o próprio corpo do livro. Apesar de tortuoso nas intempéries, o caminho ficcional de Jordan e o caminho narrativo de Hemingway são basicamente lineares, e estão estabelecidos desde o início da trama.

A prosa de Hemingway é de uma limpidez estilística singular. O livro é, nesse sentido, produto direto de suas experiências como voluntário da frente republicana contra o avanço do fascismo espanhol, que encontrava em Franco sua liderança férrea. Por quem os sinos dobram possui sua força lastreada na vida de Hemingway, sabemos que o que lá está retratado é, em grande parte, observação e participação direta do autor. E se é possível entender aqueles que não se sentem tão atraídos pela crueza da sua escritura, ela se firma por conta daquele paratexto crucial que serve de base a praticamente todas as obras do escritor norte-americano, sua romanesca existência.

É precisamente essa característica que faz o livro forte e, ao mesmo tempo, frágil. Não me entendam mal, gosto muito de Por quem os sinos dobram, mas havemos de convir que a reelaboração da realidade vivida através das propriedades da ficção é parte essencial da literatura, de modo que, se a ficção imita demasiadamente a realidade, ela se torna fragilizada perante esse fato incontornável do universo da literatura. Ao mesmo tempo, a sinceridade de Hemingway em relação ao que fala conquista o leitor de forma inusitada, pois há uma interdependência intrínseca entre o que foi a vida do autor e o que é sua literatura.

Hemingway conseguiu encontrar em suas aventuras uma espécie de esperança velada, obnubilada pelo seu jeito “casca grossa”. Há uma intensa vontade de viver e experimentar que inspira e encanta os leitores, como é possível enxergar no seguinte trecho:

“Aproveitar em intensidade o que não se pode aproveitar em duração e continuidade.” (p. 156)

ou, ainda, no seguinte, onde aparecem dois elementos recorrentes em sua obra: o senso de urgência em relação à vida, que se dá em contraste com sua antinomia, a morte, cujo estigma paira por sobre sua produção todo o tempo:

“Mas, entrementes, toda a vida que você tem ou terá se resume em hoje, esta noite, amanhã – hoje, esta noite, amanhã, e é aproveitá-la e dar-se por feliz.” (p. 153)

Apesar de Jordan estar lutando ao lado dos comunistas, que se envolveram amplamente na Guerra Civil Espanhola, subsiste nele uma desconfiança com relação às capacidades desse sistema em suprir todos os aspectos da vida. Hemingway mostra aqui como, antes de partidário de alguma ideologia específica, é um humanista cuja fé no homem é tão grande quanto sua ânsia de viver:

“Nos dois lugares tinha-se a impressão de uma cruzada. É o único termo que cabe bem, apesar de usado, abusado e gasto a ponto de haver perdido a verdadeira significação. Malgrado toda a burocracia, ineficiência e esterilidade da luta partidária, havia lá algo do sentimento que o jovem católico experimenta na primeira comunhão. Um sentimento de consagração a um dever para com todos os oprimidos do mundo, tão difícil de definir como o de uma experiência religiosa qualquer; e, no entanto, tão verdadeiro como o de quem ouve Bach, ou de quem penetra na catedral de Chartres ou de Léon e vê a luz entrando pelos vitrais; ou de quem para diante de um quadro de Mantegna, Greco ou Brueghel no museu do Prado. Era a integração da criatura numa fé profunda e num profundo sentimento de confraternidade entre todos do mesmo credo. Era algo jamais sentido antes e que, experimentado agora, adquiria uma importância suprema e diante da qual nada era a morte; a morte passava a ser evitada apenas porque poderia interferir com o cumprimento do dever. Vinha daí a capacidade para lutar.” (p. 218)

Essa espécie de experiência religiosa que faz Por quem os sinos dobram possuir tal vulto. Está contida nesse trecho toda uma leitura da realidade, a exposição, plástica e espiritual, do pensamento de Hemingway com relação à vida em suas diversas nuances e facetas. No pensamento do escritor, em sua forma de ver o mundo, não há política sem sensibilidade, não há possibilidade de se devotar a uma causa sem que suas reivindicações políticas não arejem todos os poros espirituais. A ideologia é restritiva demais perante a infinitude do humano, e a contemplação quase mística que seu cotejo engendra está sempre a ponto de paralisar Hemingway quando ele adentra na política.

Seu retrato da Guerra Civil Espanhola, portanto, é quase a antítese da análise científica. Na medida em que Hemingway volta-se ao humano num sentido universal e transcendente ao longo de toda a sua obra – seja nesse ou noutros romances –, é esse humano quase emersoniano que encontra-se por ele retratado. Seu relato da guerra é quase todo ele empírico, o que faz dele tão intimista e tão poderosamente eloquente, especialmente naquilo que, não sendo exato ou definitivo, constitui-se numa questão constantemente em aberto.

Aquele Hemingway mais melancólico e atormentado de O sol também se levanta – mais “geração perdida”, digamos assim – dá lugar a um Hemingway combativo, engajado, que se inflama espiritualmente quando se trata de fazer algo, viver algo, experimentar algo, transformar a realidade de alguma forma. Da visceral vontade de viver em sentido amplo surge o humanismo, a curiosidade perante os homens e o antídoto daquela melancolia do final dos anos 20, que vivia às raias do fatalismo. Se isso não é capaz de nos inspirar em algum nível, então creio que nossa couraça espiritual já está, historicamente, calejada demais.