Considerando que até o filme já tem quase 10 anos, vou assumir que, como eu, todo mundo já leu A Liga Extraordinária dezessete vezes e meia. Assim sendo, vou tentar ser relevante (uh oh) e compartilhar algumas ideias sobre o lugar da obra no mundo dos Quadrinhos, da Cultura Pop e Tudo Mais. Não espere uma sinopse ou análises ou qualquer aprofundamento nos temas e/ou na história em si. Também não espere muita coerência; eu não sou blogueiro, muito menos jornalista. Eu nem trabalho aqui. Eu definitivamente podia ter sido mais focado e econômico, e classificaria os parágrafos abaixo como algo entre um artigo normal com tangentes demais ou um texto em fluxo de consciência com pontuação demais. Você decide. Tais são os luxos da democracia. (Embora o Meia Palavra não seja exatamente uma democracia; o Pips me ameaçou com um cabide enferrujado pra eu escrever isso. Você pode estar se perguntando “como um cabide enferrujado pode ser tão ameaçador?” A resposta é óbvia: ele cortou em seis pedaços e colocou entre os dedos pra fazer garras de Wolverine.)Enfim.

Quando o primeiro volume da Liga foi publicado, eu tinha 19 anos. Por ingenuidade, inicialmente compartilhei da recepção que parecia ser consenso entre quem gostava tanto de quadrinhos quanto de literatura clássica: tratava-se de algo sui generis, algo tão revolucionário que os fãs de Alan Moore passaram todo o ano de 1999 movendo-se exclusivamente através de piruetas. Isso é compreensível: reduzindo a premissa aos seus elementos mais básicos – Allan Quatermain, Capitão Nemo e outros aventureiros literários formam uma equipe secreta para salvar Londres do Professor Moriarty (pronto, aí está sua sinopse, feliz agora?) – a coisa toda soa como um fanfic sonhado por um adolescente que lê demais para a própria saúde social. Claro que Moore tratou o material com muita inteligência, como é de costume, mas isso não muda o fato de que ele estava basicamente escrevendo um fanfic. Não torça o nariz para este termo.

Fan fiction,” por definição, é um conceito intrínseco à evolução das artes narrativas. Considere ícones históricos: sejam eles reais como Júlio César, hipotéticos como Spartacus ou inventados como Merlin, suas vidas são compostas de diversas narrativas com diferentes pontos de vista, muitas vezes conflitantes. O que todos tiveram em comum, no entanto, foi uma quantidade suficiente de pessoas interessadas para que estas narrativas fossem passadas para frente. Nem com os adventos da escrita e da imprensa deixou-se de aumentar pontos ao contar contos. Observe que se continua fazendo dinheiro com Robin Hood, do mesmo jeito que os bardos faziam na Idade Média. Mesmo que o produto em questão não tenha quase nada do espírito original do personagem (eu estou falando com você Ridley Scott, não se faça de desentendido), a mera menção do nome “Robin Hood” ainda faz o povo instintivamente procurar seus shillings.

Nostalgia e narrativa sempre andaram de mãos dadas. Pessoas em geral gostam de revisitar cenários familiares. Em ficção, o passado só sai de moda de vez em quando. Hoje em dia existe muito barulho negativo porque praticamente todos os filmes são adaptações de histórias e personagens que nunca saíram do inconsciente coletivo, mas esta prática, apesar de intensificada nos últimos anos, está intimamente conectada à história do cinema – a versão clássica de O Mágico de Oz de 1939 foi, até onde se sabe, a quarta tentativa de adaptar o livro desde sua publicação em 1900, e mesmo combinando todos os filmes da série Saw você não vai igualar a quantidade de adaptações de A Bela e a Fera. A cerimônia do Oscar esse ano teve tanta congratulação à Magia do Cinema que Méliès apareceu pessoalmente na afterparty e pediu pra todo mundo pegar leve na próxima vez, mas a falta de pele na caveira tornava difícil definir se ele estava falando sério. [citation needed]

Nos quadrinhos este fenômeno é mais forte ainda, porque em termos de variedade a mídia em si evoluiu dentro de um nicho tão limitado de influências que gerou uma espécie de endocruzamento cultural, cujas crias defeituosas atingiram seu auge grotesco nas obras de Mark Millar, Garth Ennis e Cia. Não, falando sério, eu adoro quadrinhos (eu até estudei quadrinhos) quando são bons, mas na maioria dos casos, e especialmente no caso dos quadrinhos serializados de super-heróis e tiras de jornal, eles pregam para os convertidos. Quem escreve histórias do Homem-Aranha hoje é quem as leu obsessivamente durante a infância e adolescência, praticamente sem exceções. Assim sendo, quadrinhos hoje em dia são quase sempre fan fiction. Dá pra entender: em que outro meio cultural você pode manter seu ícone em animação suspensa narrativa, vivendo com a mesma idade fictícia até um eventual Apocalipse não-fictício? Alguém mais folheia gibis da Turma da Mônica hoje em dia e se sente estranho? Eu me sinto. Alguma coisa está errada ali. Alguma coisa está definitivamente errada com a Turma da Mônica Jovem. Aquilo não resolve o problema nem de longe.

Guardadas as devidas proporções, o tipo de literatura na qual Moore está se apoiando também é marcado por ícones e fãs. Allan Quatermain protagoniza mais de uma dúzia de livros escritos por seu criador, além de várias histórias de outros autores (possíveis quando o personagem caiu no domínio público). Apesar de Sherlock Holmes em si não fazer parte da Liga (exceto por uma pequena participação), seu universo está intimamente ligado a ela, e Holmes é campeão neste processo de “fan fiction respeitável.” Quase todos os outros personagens são protagonistas das primeiras histórias de ficção científica, sempre um gênero que dependeu muito do povão, em geral quase tão desprezado pelos esnobes literários quanto os próprios quadrinhos. Considerando tudo isso, o conceito da Liga soa bem óbvio. Contudo, o óbvio nem sempre é ruim, e pode ser exatamente o que se precisa para desencadear uma epifania. Convenhamos, um grupo de “super-heróis” vitorianos é praticamente a coisa que Moore nasceu pra escrever. O fato de ser a única publicação da America’s Best Comics que ele continua produzindo ocasionalmente é evidência disso. O conceito em si não é original (QED), mas não há nada de errado com isso. Pelo contrário; inserindo-se em todas as tradições que eu mencionei e fazendo isso direito, a obra acaba ganhando uma camada extra de relevância. No mínimo, vai ser difícil ela se tornar datada.

Nostalgia é realmente um dos temas preferidos do Moore (vide Watchmen), e o cuidado em aproveitar-se do cenário vitoriano de formas criativas está presente em cada aspecto da Liga, da concepção à publicação. A linguagem de folhetim nos recordatórios é um prazer à parte: o contraste entre o decoro dos textos e a brutalidade do material eleva o que poderia ser um mero detalhe precioso a níveis épicos de humor negro. A arte com traços sem pesos de Kevin O’Neill, além de criar a atmosfera retrô perfeita, envolveu uma pesquisa detalhada de um jeito que muita gente não faz ideia (um filme com o mesmo esforço neste sentido seria no mínimo indicado a Direção de Arte e Figurino pela Academia). Até a editoração enfatiza essa busca por uma era perdida: hilários faux-anúncios reproduzindo o que se encontrava naquele período histórico, além de um conto em prosa, adornam o primeiro volume (os subsequentes trouxeram cada vez mais material extra, incluindo jogos de tabuleiro etc). E, claro, referências literárias estão espalhadas por literalmente todas as páginas.

Mas as referencias da Liga, seja nos diálogos, personagens periféricos ou nos inúmeros detalhes dignos de Onde Está Wally? espalhados pelos painéis, não estão lá para que você se sinta esperto porque leu aquele livro. Elas são usadas do jeito certo, nunca ofuscando o ponto da cena em questão, mas sim contribuindo para criar um universo coerente e aparecendo organicamente dentro da narrativa. Já que uma cena seria necessária para estabelecer a versão hardcore de Jekyll/Hyde, por que não uma sequência de ação na Rua Morgue, envolvendo uma série de crimes investigados por Auguste Dupin? Simplesmente faz sentido, não? O McGuffin da história é a cavorita de H.G. Wells, um elemento impérvio à gravidade que Moriarty usa para construir uma máquina de guerra aérea, então é óbvio que em certo momento o grupo vai precisar voar. Nesse caso, por que não utilizar o balão de Cinco Semanas em um Balão, o primeiro hit de Júlio Verne? Eu imagino que Moore fez várias dessas conexões quase subconscientemente. Eu particularmente gosto de visualizá-lo num estupor de haxixe exclamando “Pelas escamas de Glycon, a coisa se escreve sozinha!” Não me entenda mal, bordar essas referências de forma competente no tecido narrativo (OK, chega de metáforas) deve ter sido extremamente trabalhoso.

E o que faz todo o esforço valer à pena é ironicamente pragmático ao considerar o quanto eu viajei até agora: a história é simplesmente uma boa história, um delírio steampunk perigoso, misterioso e hilário. Você quer descobrir mais sobre aquele universo e mal pode esperar pra saber o que vai acontecer com os personagens em seguida. Dentro de seu contexto como “quadrinhos adultos,” por mais que envolva uma bela dose de violência e conteúdo sexual, a Liga tem um espírito lúdico que hoje em dia acaba evocando mais a série de TV do Batman dos anos 60 do que O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller. A maturidade aqui não é definida por um aviso na capa dizendo que a história não é recomendada para crianças (embora Moore inclua avisos desta natureza como mais uma piada nos recordatórios), mas sim pela elegância da estrutura narrativa e pela tridimensionalidade dos personagens. (Não que a série do Batman tivesse alguma elegância ou tridimensionalidade. Ela tinha, no entanto, senso de humor e ganchos onde o narrador não conseguia parar de enfatizar o quanto nossos heróis estavam teoricamente ferrados.)

Por falar em nossos heróis, é nos personagens que reside o maior desafio no processo de equilibrar pesquisa e criatividade; era o mais fundamental para o sucesso da obra (afinal, estamos lidando com ícones), e foi talvez seu maior triunfo. As novas interpretações são engenhosas, sempre levando os personagens a lugares interessantes e lógicos. Quatermain para mim é o destaque, mas eu tenho uma simpatia especial pela Mina porque eu não vejo graça na versão original dela. (Pra ser completamente honesto, eu não vejo graça em basicamente nada que envolve o Drácula, a começar pelo livro Drácula. Em outras notícias, o primeiro volume da Liga ganhou um Bram Stoker Award.) A evolução de vítima a protofeminista é muito bem-vinda e cria boa parte das melhores interações entre os membros do grupo. O jeito como cada um dos “cavalheiros” reage à sua posição de liderança revela verdades fundamentais não apenas sobre os personagens em si, mas também sobre o espaço das mulheres tanto na sociedade quanto na literatura da época. Quatermain, por exemplo, está tão acostumado com todas as damas em perigo que salvou em suas histórias que o conceito de uma mulher assertiva nem entra em sua cabeça. Claro que ele se apaixona imediatamente e, após lançar o vilão em órbita, os dois finalmente se beijam quando acreditam estar prestes a despencar para a própria morte. Awwwwww.

P.S.: Recentemente houve uma polêmica envolvendo a nova série com os personagens de Watchmen. Moore disse que a DC Comics devia se concentrar em novas ideias ao invés de ficar sugando as criações dele. A DC Comics argumentou que francamente só está fazendo com os personagens de Watchmen o que o próprio Moore fez com personagens de outros autores na Liga. Moore argumentou de uma forma complexa demais pra eu reproduzir aqui que corre o risco de não fazer o menor sentido, o que no fundo pode ser neblina verbal pra esconder uma verdade muito mais simples: é possível que ele tenha (a) quase certeza que as histórias em si serão ruins e (b) muito medo de ofender os colegas de profissão, portanto, se a recepção for morna os autores podem sentir consolo no fato de que talvez não fosse uma ideia muito boa desde o começo. Faz sentido. Se você precisa culpar alguém e uma corporação é opção, escolha sempre a corporação, exceto quando pedófilos e assassinos em massa também forem opções.