Alan Moore é daqueles autores que se tornaram cult seja pelas histórias sensacionais que escreve, seja pelas excentricidades que o cercam e pelas quais é lembrado. Praticamente tudo o que ele põe as mãos acaba virando algo memorável, e não é diferente com V de Vingança.

V de Vingança foi publica de 1982 a 1989 e retrata uma distopia onde o palco é a Inglaterra. O protagonista é o misterioso V, um revolucionário mascarado, de gestos cavalheirescos e saberes refinadíssimos, que se envolve com a inicialmente frágil Evey Hammond. O par romântico (um romance bem peculiar, diga-se de passagem) formado pelos dois atravessa o livro e ajuda a desnudar todo o aparato de poder totalitário que domina a Inglaterra.

Cartazes com frases tipicamente totalitárias (exortando a união nacional e o patriotismo) encontram-se em cada parede, e uma vigilância repressiva ronda todo o cenário urbano, criando um clima opressivo digno de 1984, de Orwell. Sabemos que estamos em uma realidade em que o governo procura manipular a tudo e a todos no intuito de sustentar a ignorância e enfeixar as vontades gerais em torno dos ideais do partido central, nas mãos do qual está o poder administrativo.

Evey encontra-se no meio desse labirinto aparentemente sem saída, bastante alienada, inclusive, a respeito dos pilares podres que sustentam a sociedade; mas ao passo em que vai estreitando seus laços com V, vai se tornando consciente da realidade na qual vive e, diante de seus dilemas, percebe que precisa fazer algo. Esse ponto de virada é uma das mais belas seqüências quadrinescas que já tive a oportunidade de ler. É algo bastante impressionante e ao mesmo tempo aterrador seu (re)nascimento, pois, entre outras coisas, nos exorta ao nosso próprio.

Como em outros trabalhos, Moore dialoga com uma constelação de referências e investe quase todas elas na constituição de V, uma figura dotada de um carisma realmente magnético. Não conhecemos seu rosto verdadeiro, pois ele usa todo o tempo uma máscara de Guy Fawkes – um conspirador que por pouco não explodiu o Parlamento Inglês no século XVII. Ele cita livros, filmes e músicas, e aprecia-os com tal refinamento e cultura que fica difícil não torcer por ele e por seus intentos.

V atua de formas elegantes e é dono de uma decisão admirável. Os intrincados planos por ele montados para arquitetar seus projetos de sublevação do totalitarismo são verdadeiras pérolas. V, ideologicamente, se aproxima do anarquismo, buscando incitar as pessoas a derrubarem o governo e assumirem elas mesmas as rédeas de seus próprios destinos ao invés de autoridades investidas de poder.

David Lloyd deu ao V um “rosto” que se tornou sinônimo de conspiração, não somente por conta de sua referência histórica, mas porque se inseriu, em alguma medida, no imaginário coletivo como sinônimo de contestação e anarquia. Não à toa que o símbolo que ele grava nas paredes seja um círculo cortado pela letra “V”, muito similar ao símbolo anarquista, que possui a letra “A”.

Moore habilmente costurou as referências para dar corpo a uma história que guarda muitas similaridades com a própria situação política inglesa da década de 80, em que a “dama de ferro” Margaret Thatcher estava no poder. O governo totalitário da graphic novel também se caracteriza por um governo inflado, munido de um controle social rígido em que a propaganda ocupa lugar central como criadora de consenso. Tanto quanto uma história que flerta com a fantasia e as característica distópicas, V de Vingança apresenta uma leitura da realidade histórica bastante interessante.

V de Vingança é mais uma daquelas histórias em que você encontrará todo o brilhantismo e o talento de Moore, incrustado nos pequenos detalhes, das inúmeras referências e nas mensagens subjacentes, que pululam nas entrelinhas da trama. Se você relê-la daqui a algum tempo, você certamente irá encontrar minúcias que não tinha notada da primeira leitura, e assim por diante, como em A liga extraordinária e Watchmen. Isso sem falar na narrativa de Moore, tão rica quanto tonitruante, criadora de personagens e passagens antológicas como é. Dá para perceber o carinho e o esmero de Moore em cada pequeno fragmento de trama e diálogo que lemos. O reconhecimento a ele devotado é deveras merecido.