Leonard Cohen é poeta.

É um poeta estupendo e quase alienígena, é um compositor extraordinário – há quem diga que uma coisa não existe sem a outra, mas não entremos nessa discussão agora – que compôs músicas como Suzanne e Birds on the Wire. Entre seus dois primeiros livros de poesia e seu primeiro álbum, Songs of Leonard Cohen, o canadense de Montreal publicou A brincadeira favorita, seu primeiro romance com tons autobiográficos que, segundo consta, foi reescrito umas cinco vezes. Aliás, foi por conta desse trabalho que Leonard não foi despejado de seu apartamento. O acordo da senhorio do prédio com ele era que todo dia pelo menos três páginas fossem escritas como forma de pagamento. Frases curtas, passagens belíssimas, imagens extremamente belas descritas em trechos sucintos, há tanta poesia incrustada dentro desse livro que é impossível não se pegar relendo diversas vezes. A prosa poética de Cohen não é difícil de acompanhar, é leve, irônica e passando mais da metade do livro, triste.

Acompanhamos a infância, adolescência e vida adulta de Lawrence Breavman, dividida em quatro livros com capítulos curtíssimos. Breavman é integrante de uma comunidade judaica de Montreal que perde precocemente o pai, um pobre doente e azarado, e deve conviver com a mãe – típica judia. Ele e seu melhor amigo, Krantz, tentam ajudar um ao outro a entenderem o mundo da melhor maneira, ou melhor, à sua maneira, desde brincadeiras pueris até o descobrimento da sexualidade, sem se esquecer de passar por diversos dilemas religiosos. Muitas das brincadeiras de cunho sexual, e consequentemente a veneração pelas mulheres e seus corpos, moldarão parte da personalidade e arte – se é que as duas podem ser separadas de fato – do protagonista. Situado entre os anos de 1940 e 1950, Cohen não ressalta grandes momentos históricos como pano de fundo, apenas os trata em metáforas cheias de sadismo e duplo sentido nos jogos infantis baseado no confronto entre nazistas e aliados.

O estímulo sensorial nas passagens descritas no texto – que mais tarde dá-se a entender que pertencem a um diálogo entre Breavman e Shell – percebemos o quanto o corpo feminino é o fio condutor da formação do personagem principal. A todo momento enxergamos a obsessão em seu âmago, a vontade de explorar a sexualidade fantasiosa, poética e carnal. Tanto que Montreal parece não mais satisfazer seus olhos ou suas vontades, e Breavman precisa ir à cidade grande, conhecer novas pessoas e experimentar novas sensações. Quando conhece Shell, mulher casada com um homem que rejeita o sexo, o personagem parece querer chegar ao limite da sua existência terrena – o que, claro, uma hora ou outra será colocada à prova por aquelas coincidências cretinas que o destino nunca nos deixa ignorar.

Lawrence Breavman não precisa somente de novos ares, como um grande poeta em um pequeno cosmo, ele necessita de novas experiências para ultrapassar seus próprios limites artísticos que eram limitados ao tamanho da densidade demográfica de Montreal. Um autoexílio na cidade de Nova York será o grande passo e transgressão para que a vida adulta chegue de supetão. Como muitos sabem, não é possível viver de amor e poesia, há muito mais do que ambições e desejos a serem realizados no mundo dos adultos, quando o mundo bate à porta e pede para que todos se deparem e enfrentem a realidade.

Cheio de citações musicais, bom humor e muita poesia – disfarçada de prosa – A brincadeira favorita é um romance que seduz e captura o leitor, antes mesmo que este possa tentar se livrar do feitiço poético de Leonard Cohen. É quase impossível acreditar que esse tenha sido o primeiro romance do poeta e compositor tamanha sua qualidade estética e prosaica.