Outro dia estava pensando sobre como seria a história que contariam sobre a mim. Como eu seria descrito em personalidade e características ou qual lado gostariam de exaltar para contar a minha trajetória. Quais aspectos seriam deixados de lado para que o plot principal não perdesse o foco e fosse respeitado. Falariam, talvez, de como o falecimento do meu avô materno teve consequências irrepreensíveis em minha vida e que a partir daquele ponto eu nunca mais pisaria dentro de uma sala de velório e espiaria o defunto com dois algodões, um em cada narina, uma roupa que nunca o vi usar, e diversos conhecidos e entes queridos que até esse dado momento não faziam parte de um plano terreno nomeado: conhecidos, parentes e afins.
Claro que antes mesmo de pensar em algum biógrafo para romancear minha trajetória, eu poderia escrever uma autobiografia, mas começaria com: nasci, cresci e morrerei? Seria enfadonho demais começar de maneira não-linear também. De fato, o que eu estaria vivendo no momento em que digito a fatídica e falsa autobiografia, seria o grande catalisador para ressaltar as rememorações ligadas de maneira indireta e para manter uma sombra por cima de tantas outras. O melhor seria escrever em terceira pessoa, sobre uma pessoa amante de livros e filmes, que um dia, sem mais nem menos, cai morto diante de seu MacBook Pro enquanto digitava um exercício, que se concretizado, tornaria-se sua autobiografia intitulada com palavras de coragem, aforismos e, se por puro egocentrismo, o primeiro nome. Na capa uma foto em preto e branco.
Nada disso acontecerá, e provavelmente não cairei duro antes de terminar essa coluna taciturna – pelo menos meus exames anuais demonstram grande força de vontade do meu coração e teimosia do meu fígado -, é quiçá interessante pensar, por exemplo, em quem seria o escritor ideal para romancear determinados momentos da minha vida em um conto ou em um romance de fluxo de pensamento. Num lapso pego uma carona no teleférico da memória, com gosto de nostalgia, e caio no episódio em que tomo meu primeiro fora porque nunca usei aparelho ortodôntico. A menina que eu perseguia durante anos e que era deveras bondosa e atenciosa, revela-me uma extrema aversão a dentes encavalados. Um retrato da infância que poderia muito bem ser escrito por Michel Laub, desencadeando sensibilidade e crueldade em poucas linhas. O mesmo relato poderia ser descrito com a mágica hermética de Javier Marías: um momento em que oscilam a beleza da menina e a minha ansiedade e em seguida minha decepção perante a verdade de que mulheres gostam de dentes retilíneos.
Seria, talvez, Clarice Lispector quem descreveria todo meu sofrimento durante o velório do meu avô, dando saltos no tempo e lembrando que na noite anterior ao seu falecimento eu briguei com ele por míseros cinco reais, e três meses antes, ouvira de seus lábios negros uma das histórias mais pornográficas, escatológicas e inimagináveis – aglutinando sentimentos antes da primeira lágrima ser derramada no presente da narrativa. Ou lá estaria Marçal Aquino falando sobre a minha primeira experiência sexual e a camisinha do lado contrário – “Amor, tá muito seco”, diria a menina, “Relaxa, é assim da primeira vez”, respondo como se fosse o mais experiente dentro do quarto; ou então Sérgio Sant’Anna falando da menina que desmaiou ao dar o sexo oral mais longo da história da humanidade paulistana.
De bom apreço, sairia das letras de Lygia Fagundes Telles a minha primeira catapora, que se tornaria um ponto interessante da minha existência enquanto criança, e Pedro Bandeira criaria um grupo de primos que se aventurava num bairro que era do tamanho do mundo.
Através da minha transformação musical, Nick Hornby falaria sobre meus amigos de longa data e como cada um deles é imortal como um álbum de rock and roll da década de 70 – do psicodelismo ao punk cru. Roberto Bolaño, com um cigarro pendurado na boca, enumeraria as inúmeras amizades que a literatura me trouxe ao longo dos anos e como ela me fez viajar para Curitiba e Porto Alegre. E quem sabe, já pensando num futuro como coadjuvante, Enrique Vila-Matas usaria o nome de amigos escritores como Antônio Xerxenesky para liderarem seu novo romance e no meio de tantas páginas, surgiria um personagem aspirante a escritor, que trabalha como crítico e roteirista, mas na verdade é astrólogo de boteco e não perde jogos de futebol às quartas à noite.
Será que seria? Continuarei com as minhas biografias em terceira pessoa, cheias de aventuras de rodapé, para inspirar meu futuro biógrafo.
Para os papos do boteco com um “Q” de filosofia e astrologia, chame o Jostein Gaarder.
Aliás, li ontem no Rascunho um texto sobre biografias que representam a vida real do escritor ou não. Concluímos que na literatura tudo pode ser verdade.