Sendo uma obra de certa forma distinta das demais de Jean-Marie Gustave Le Clézio (1940), O africano (2004) é uma crônica de memórias, uma espécie de homenagem tardia do autor a sua infância na África colonial e a seu pai. Esse livro, agora relançado na coleção Portátil da editora Cosac Naify, nos aproxima mais do escritor e de sua vida pessoal. Le Clézio, mais reconhecido nos últimos tempos após ganhar o Prêmio Nobel em 2008, já lançou muitas obras desde a década de 1960, porém O africano se diferencia de muitos de seus trabalhos anteriores mais consagrados.

Se pensarmos em termos literários, veremos que essa narrativa autobiográfica se mostra como uma evidência de como Le Clézio mudou como escritor desde que lançou seu primeiro romance, Le procès-verbal (1963). Antes marcado por seu experimentalismo, ligado à estética da literatura francesa do pós-guerra, passa a adotar uma nova imagem, um estilo mais intimista a partir da década de 1980. Atualmente o autor é mais visto sob essa segunda imagem que o consagrou na França e no mundo, o que fez com que fosse muito lido, inclusive no Brasil.

O africano jásurge nesse momento em que temos uma imagem mais estável da carreira literária do autor. Aqui, Le Clézio relata sua experiência como uma criança que, após uma primeira infância no território francês sob ocupação nazista, foi com a mãe e o irmão para o interior da Nigéria para encontrar o pai, médico na então colônia britânica. Até esse momento, já com 8 anos de idade, aquele pequeno francês não havia sequer conhecido o pai, já que a guerra havia impedido que este voltasse à terra natal. Isso se deve ao fato de que, sendo mauriciano (da colônia britânica da ilha Maurício) e empregado do Reino Unido, seu pai era considerado inimigo em terras invadidas pelos alemães.

Os relatos presentes em O africano se dão nesse cenário especial em que uma criança cresce reclusa em casa, para fugir das atrocidades do inimigo, e depois se dirige para uma terra nova, em que se depara com uma cultura totalmente diferente da sua. Ao contrário de outros relatos de colonos de territórios africanos, aqui lemos o testemunho de alguém que parece ter vivenciado a África de africanos que não se preocupavam nem um pouco em seguir os costumes europeus. Como Le Clézio ressalta, o que para ele havia era, ao mesmo tempo, a rigidez da educação desse seu novo pai e a liberdade que sentia diante da natureza e dos africanos. Ao longo do livro, seu pai se mantém como uma figura a ser admirada, o médico que fugiu da civilização para ajudar desconhecidos, porém a sua autoridade na família também aparece para coibir a liberdade total dos filhos, lembrando-lhes que é preciso seguir regras.

Já é possível imaginar que esse choque cultural presente em O africano se reflete em muitas das visões de Le Clézio acerca da colonização europeia na África, ou melhor, da “ocupação britânica e francesa”, termo recorrente ao longo da narrativa. O próprio fato de ter sido escolhida a palavra “ocupação” em vez de “colonização” já expõe a posição anticolonialista do autor. Ainda que isso pareça ser contraditório, afinal ele mesmo esteve em posição de colono, conseguimos notar como o espaço em que seu pai médico atuava era quase que intocado pelos europeus. O próprio pai é alguém estranho para o filho, esse pai que se esforça para se aproximar da família, ainda que ele mesmo já pareça ser mais africano do que europeu (daí o título da obra). Eles estavam distantes da costa, onde os colonos ditavam as regras e exploravam ao máximo os africanos, daí essa aura de liberdade que permeia os relatos.

Acredito que um dos testemunhos mais significantes de O africano seja justamente o inicial, intitulado “O corpo”, em que temos realmente uma descoberta do ser humano pela criança europeia. Ao se deparar com uma velha africana, enrugada e com peitos caídos, só ali ele foi perceber a real existência da velhice e a fragilidade do seu próprio ser. As idosas do interior da França estavam sempre disfarçando sua idade através de camadas de elegância e ornamentos, porém aqui havia a liberdade dos corpos, liberdade que permitia que as crianças experimentassem a natureza e se sentissem a ela integradas. Uma espécie de presença libertária das sensações, que vão desde ser picado por formigas até o calor que nos faz perceber os corpos.

Assim sendo, o que temos nessas memórias é a consciência da parte do autor de que sua vida na África foi um período de enfrentamento com o outro após uma guerra que o limitou somente aos seus próximos. Essa vivência lhe rendeu questionamentos que continuaram a influenciar em sua vida tardia, já de volta a terras francesas. Ele mesmo conclui que, ainda que na época pensasse que não havia lá qualquer atitude dominadora da parte de sua família em relação aos africanos, eles participaram de um contexto de colonização. O próprio fato de seu pai ser médico dos africanos já era um meio de impor a medicina europeia a eles, que foram criados sob a influência dos feiticeiros locais. Percebe-se que O africano não são simples crônicas da infância de Le Clézio, mas uma coletânea de epifanias e pensamentos de uma época da sua vida que foi responsável por lhe mostrar toda a complexidade cultural do mundo.