“Tal era o sistema que fundava a existência de Victoria: jamais estar no mesmo lugar, segmentar-se num grande número de atividades e projetos para nunca se deixar aprisionar por nenhuma verdade – mas ser em si mesma, dentro do movimento, sua própria verdade. ”

O excerto que abre esta resenha faz parte de um livro que terminei há algum tempo, Le Système Victoria (O Sistema Victoria), de Éric Reinhardt. Trata-se de uma obra que fez bastante sucesso na França em 2011, assim como Freedom, de Jonathan Franzen, fez nos EUA.

O apelo dos dois livros vem exatamente do fato de serem uma foto do nosso momento. Eles estão sincronizados com o bode – ou o urso (símbolo do pessimismo no mercado financeiro) – do crash de 2008. Ambos discutem as liberdades individuais versus as necessidades da coletividade; a morte dos idealismos e a ascensão do pragmatismo abjeto.

Primeiro, uma sinopse: David é um homem da classe média francesa, casado, duas filhas e com o hábito de viver pequenas aventuras extra-conjugais com desconhecidas que ele aborda na rua. Numa de suas investidas ele conhece Victoria, uma mulher bela e imponente, com quem ele vai ter um tórrido, e denso, caso de… “amor”. Um caso vivido em quartos de hotel, trocas febris de e-mails e SMS.

O foco do escritor é mais do que o affaire dos dois, é a quase luta de classes que se interpõe entre os amantes e está mais relacionada à percepção de David, que quer sempre se colocar como o “elo mais fraco”. Ele se define como un homme de gauche, um arquiteto de formação, que, por razões financeiras, começou a trabalhar como diretor de obras. Enquanto mantém seu caso com Victoria, ele é responsável pelo canteiro de obras do que será a torre mais alta da França, e vive todos os horrores e pressões ligadas a prazos, orçamentos, além da tirania de seus superiores.

Victoria, por outro lado, é uma expatriada que vive em Londres, diretora mundial de recursos humanos de um grande grupo industrial europeu. Durante seu caso com David, ela vive em guerra com os sindicalistas franceses, isso porque o grupo que representa decidiu se livrar de sua indústria pesada, a qual começara a afetar o valor de sua ações.

Ok, legal, mas… e daí?

Bom, Reinhardt tentou condensar no romance todas as contradições do sistema que vem reinando desde a liberalização financeira dos anos 70, além das neuroses e tics do dia-a-dia pós-moderno. Victoria é parte de uma casta específica – uma mulher que sente que tudo lhe é devido; uma cidadã do mundo globalizado, que viaja de país em país, se hospeda nos melhores hotéis e ganha 350.000 euros por ano (ah, isso sem contar suas stock-options). David por outro lado se sente parte de um sistema que o explora desumanamente; que não lhe dá a menor migalha, que mina sua inspiração e envenena seu idealismo.

Semelhante ao mercado de trabalho e o caos da vida cotidiana, Victoria também suga David. Ela é a encarnação das liberdades localizadas da Mundialização ((Mudialização é como os franceses se referem à globalização. No entanto,  é um enfoque do fenômeno num sentido mais cultural.)) e do apetite insaciável do capitalismo. Só é livre quem está em constante movimento – os grandes investidores, os homens e mulheres de negócio ou, em outras palavras, o grande capital. Este entra nos países em busca de rendimentos maiores, apesar da natureza fictícia e nefasta destes rendimentos, e evade quando consegue a valorização, deixando possíveis danos para trás.

David, no espectro oposto, não é livre. Ele é a materialização da velha França, ligada ainda ao sindicalismo; regional, idealista de esquerda e ressentida com todos os privilégios do Estado de Bem-Estar Social que já perdeu (e os que ainda perderá). Trata-se da França que se ajoelha frente às investidas do capital, superpoderoso desde a desregulamentação dos anos 70-80.

Victoria e David vivem uma relação maluca de dominação mútua. Não há vítimas nesta história. David se submete à Victoria, porque no fundo a inveja e, mais no fundo ainda, quer ser como ela. No fim, ainda que de outra forma, ele também a suga. Para saber mais detalhes, você terá que ler o livro. Infelizmente, o título não foi lançado no Brasil e não sei se será. Outras obras de Reinhardt existem por aqui, porém não foram traduzidas. De toda forma, não se preocupe: todos os livros “cult” que sairão nos próximos 5 anos falarão exatamente sobre o mesmo tema e abordarão os mesmos tópicos, só mudando a trama.

Sobre a autora: Isadora Calil é criadora e autora do hub literário Aperte (o) Botão, site dedicado a escritores de fim de semana e curiosos em geral. É uma apaixonada por Literatura, Cinema e Ciências Sociais. Foram curvas e muitos obstáculos, mas todos os dias chega mais perto da sua verdadeira vocação – usar a palavra como forma de criar novos universos.