Apesar de existentes, meus conhecimentos a respeito da Hungria são um tanto quanto parcos: sei onde fica (no coração da Europa Centro-Oriental), sei que é composta por várias etnias (húngaros, sérvios, croatas, romenos, judeus, ciganos, eslovacos…) mas que sua etnia dominante – isto é, os húngaros – são um dos poucos povos cuja origem não é indo-européia naquele continente, o que faz com que seu idioma seja quase que completamente alienígena para seus vizinhos (quase pois, depois de séculos de convivência, certamente ocorreu certa infiltração mútua). Sei, ainda, que nos últimos séculos muitas vezes a Hungria esteve no centro de alguns acontecimentos de relevância mundial – a dinastia dos Habsburgos, afinal, incorporou o nome do país ao nome de seu império  – e, caso contrário, muitas vezes esses acontecimentos estiveram no centro da história húngara (vide o nazi-facismo e o comunismo soviético).

Mas não conheço muito mais. Não sei como se configura o pensamento húngaro, não sei como é a vida húngara. E com isso, infere-se que sei relativamente pouco sobre a literatura húngara. Li uma boa quota das obras de Imre Kertész. Conheço uma ou outra coisa de László Krasznahorkai, Peter Nadas, Peter Esterhazy e István Örkény. Somam-se aí alguns poetas cujos nomes complicados demais  não consigo me lembrar (muitas vezes, essa dificuldade parece diretamente proporcional à qualidade dos poemas, o que torna ainda mais triste que eu não me lembre dos nomes).

Eis que a coletânea que termino de ler – providencialmente intitulada ‘Contos Húngaros’ – vem bem a calhar: traduzida diretamente do húngaro por Paulo Schiller, trata-se de uma seleção de contos de quatro dos mais representativos escritores húngaros do século XX, que influenciaram muitos (se não todos) os autores húngaros que citei conhecer e, certamente, inúmeros autores de outras nações. A saber: Deszö Kosztolányi, Gyula Krúdy, Gésa Csáth e Frigyes Karinthy.

São quatro contos Kosztolányi, em que se pode perceber certa constância estilística. São todos curtos e de desfechos bastante impactantes, exemplos impecáveis para qualquer teorização a respeito do conto.  Destaco dois deles: O leitor, sobre um rapaz que lia compulsivamente toda e qualquer coisa que lhe caísse às mãos, e que acaba morto justamente por conta desse hábito ; e Velhos, em que um par de amigos, já idosos, tentam recuperar os anos perdidos da juventude voltando ao apartamento em que moraram na época de estudantes,  retomando os antigos hábitos – o que acaba sendo tão patético quanto soa.

Segue-se o único conto de Frigyes Karinthy presente na antologia, Professor, por favor.  Em muitas coisas é diametralmente oposto aos de Kosztolányi, pois é bastante longo e composto por sessões menores. Narra a vida escolar de um garoto – que via de regra é um bom aluno, mas nem sempre, e as suas angústias de escolar. Em um nível mais profundo, quiçá possa-se ler ali as transformações do próprio mundo em que o autor vivia, em que pipocavam diferentes ideias mais ou menos radicais, que por algum tempo alternaram-se na hegemonia sobre a intelligentsia e até mesmo no poder na Hungria.

Com Géza Csáth retornam os contos mais curtos, mas desta vez a leveza fica de lado, cedendo espaço para a violência. Em Matricídio, por exemplo, dois garotos matam a própria mãe para presentear uma prostituta. A grande sacada de Csáth está em deixar o desfecho em evidência desde o princípio, mas sem entregar os pontos logo de cara – gerando assim uma tensão surpreendente, pois espera-se que a violência anunciada desde o começo aconteça a qualquer momento.

A coletânea finaliza com os contos O último charuto no Arabs Szürke e O jornalista e a morte, que acabam sendo dois lados da mesma moeda. Um jornalista escreveu um artigo difamando um famoso cassino, frequentado por pessoas ricas e poderosas. Ofendidos, mandam que um tal ‘coronel’ – que, na verdade, é pintor –, considerado o mais mortífero atirador da Hungria, dê cabo do jornalista em um duelo de pistolas, como manda a honra. Ambos os contos narram o mesmo espaço de tempo, que é o dia imediatamente anterior ao duelo, mas o primeiro segue os passos do coronel e o segundo os do jornalista.

Se a experiência de leitura dos contos por si só já é sensacional, o prefácio de Nelson Ascher só vem adicionar ao livro. Junto com duas outras coletâneas de contos húngaros, organizadas e traduzidas por Paulo Rónai, essas antologia publicada pela Hedra é uma boa porta de entrada para o curioso mundo da literatura húngara.