Em toda eleição um pensamento me vem à cabeça: e se as maioria dos eleitores resolvesse votar em branco? O que aconteceria? Eu nunca passei de algumas reflexões hipotéticas superficiais e meramente episódicas, já José Saramago foi mais longe: escreveu um romance explorando essa possibilidade, suas implicações e a maneira como, talvez, as coisas iriam se dar. O título dessa cogitação literária é Ensaio sobre a lucidez, publicado em 2004.

Tudo começa numa manhã chuvosa de domingo de eleição. Numa seção de votação os representantes do p.d.m. (partido do meio), do p.d.d. (partido de direita) e do p.d.e. (partido de esquerda) começam a se preocupar pelo fato de nem sequer uma viva alma comparecer à eleição. A preocupação só vem a ter fim perto do final da tarde, quando a chuva dá uma trégua e as pessoas, como que impelidas por um mecanismo anímico geral, saem às ruas e inundam as seções de votação.

O insólito não é essa ameaça de abstenção geral, mas o resultado da votação: a maioria dos votos foi em branco. Essa situação sem precedentes desafia as possíveis medidas e estratégias dos representantes dos três partidos e das autoridades, os quais resolvem, meio confusos com a notícia e um tanto quanto irritados com esse inesperado desfecho, convocar uma nova eleição. O resultado, entretanto, se agrava, e a porcentagem de votos brancos aumenta.

Contrafeito e de forma um tanto vingativa, o Estado (com todos os seus representantes, autoridades e lideranças) deixa a cidade onde a votação em branco ocorreu, de a vida por lá sem nenhuma mediação institucional. As autoridades acreditavam que a saída seria seguida de um caos tremendo, algo que, no entanto, não acontece, pelo menos não do jeito nem pelos motivos que as autoridades imaginavam. As pessoas continuam tocando suas vidas como sempre o fizeram e somente algumas questões pontuais (como a da gasolina e das comunicações para além-fronteira) saem de sua “normalidade”. As autoridades, intrigadíssimas e inconformadas, querem não só entender o que ocorreu (para evitar que ocorra novamente), mas também reaver seus antigos postos, prerrogativas e privilégios, ao passo que enviam um investigador para dentro da cidade.

Através desse sujeito e do (estapafúrdio) alarde feito pelas autoridades de que a votação em branco tinha sido consequência da cegueira de quatro anos atrás (narrado em Ensaio sobre a cegueira) é que o livro tem seguimento. Os antigos personagens vem à tona e ajudam Saramago não só a dar plausibilidade a suas investigações hipotéticas como também a construir uma fina e mordaz sátira aos limites da democracia representativa. A forma como as pessoas se comportam umas em relação às outras sem governo tem um gostinho anarquista, uma subversão rica de possíveis reflexões.

É possível notar o amor de Saramago pelas pessoas comuns em suas atividades mais cotidianas, na vida em si, sem glamour, mas buscando tranquilidade, estabilidade e dignidade. Essa atitude de sensatez das pessoas (ou de lucidez, como sugere o título) é contraposta a dos políticos que se viram alijados do poder pelo próprio caráter representativo do poder: eles parecem exibicionistas e ardilosos, preocupadas mais com suas próprias individualidades do que com as “coisas” públicas.

Sem o Estado para mediar as relações entre os sujeitos em sociedade, o que aparece não é o caos ou o “homem lobo do homem”, mas uma compreensão talvez inusitada para alguns, de respeito em relação aos demais. Não um respeito pleno, “feliz para sempre”, romântico, mas um respeito suficiente para manter as dinâmicas mais básicas da vida sem fazer a sociedade ou a assim chamada “civilização” entrar em colapso. Saramago é sutil ao lidar com isso, não é dado a extremismos nem maniqueísmos para nenhum dos lados. Antes de abstrações metafísicas ele está preocupado com a matéria-prima do cotidiano, as práticas mais imediatas, o senso comum, os hábitos arraigados, as pessoas como elas são.

Ensaio sobre a lucidez é deveras um romance prolífico, que traz em si uma profusão de possíveis discussões, principalmente, em minha opinião, com relação aos limites da democracia representativa e aos nuances mais cotidianos e práticos da política, que visões mais oficialescas ou simplistas não estariam dispostos a assumir ou tratar de forma tão aberta quanto o trata Saramago.