Há algum tempo que eu vinha pensando em falar sobre esses dois livros e as incontáveis reviravoltas da história que se interpõem entre eles. A ideia surgiu como uma espécie de convite por parte do próprio autor de um dos livros em questão, Javier Marías, que cita a obra O coronel Chabert, de Balzac, na sua própria: Os enamoramentos.
A título de contextualização: em seu romance Os enamoramentos, Javier Marías alude à obra de Balzac para que ela sirva como espécie de analogia ilustrativa de uma determinada situação que se passa em seu romance, a saber, quando a morte de um sujeito altera o arranjo e o estado das coisas de maneira irremediável. Na história de Balzac, quem morre é o coronel Chabert, na história de Marías, quem morre é Miguel Desvern.
As mortes, cada qual em seu contexto, ensejam uma reorganização das relações sociais dos personagens, de modo que no romance de Balzac a mulher de Chabert casa-se com um nobre, tornando-se Condessa Ferraud; e no de Marías, Maria Dolz, a observadora externa, passa a fazer parte do círculo de amizades de Luísa Desvern, a viúva. Ou seja, apesar da dor da morte e das convulsões psicológicas e emocionais da perda, a realidade encontra novamente alguma estabilidade, como se voltasse a ter um determinado continuum minimamente sólido.
A partir daí, contudo, as histórias se afastam de maneira um pouco mais visível. Chabert, descobre-se, não foi realmente morto; e Miguel Desvern, mesmo morto, continua a fazer parte da complexa trama de amizades e afetos que fora arranjada precisamente por conta de sua morte. Enfim, não sendo mais relevante prosseguir com a apresentação das tramas para a discussão desse texto, paro aqui. Caso tenham se interessado, resenhei o livro de Marías e o de Balzac.
O que me chamou a atenção quando da leitura dos dois romances foram as diversas diferenças existentes entre a literatura de Balzac e Marías, sendo a primeira delas a construção dos personagens. Há uma preocupação muito distinta por parte dos dois escritores, de modo que os personagens de suas tramas foram construídos ambicionando objetivos muito diferentes.
Chabert, por exemplo, possuía uma vida relativamente estável mas fez carreira militar – e ganhou prestígio e melhores prospectos materiais – nas guerras napoleônicas, sendo, a seu modo, um arquétipo de diversos outros sujeitos que tiveram trajetória similar à dele. O casamento da viúva Chabert com o Conde Ferraud mostra como Balzac estava atento ao processo de retorno de vários aristocratas à França, uma política levada a cabo pelo governo napoleônico. Em outro contexto, Miguel e Luísa Desvern, na medida em que Marías buscou descrevê-los, não são representantes de grupos sociais mais definidos, eles são descritos principalmente através de sua individualidade, mais enquanto sujeitos, portanto, do que como classe ou grupo social. O mesmo se passa com Maria Dolz, uma editora cujas explorações descritivas de Marías retratam através de introspecções psicológicas e de sua moral e atos.
Os romances e seus personagens, portanto, são representantes de estilos de literatura bastante diferentes apesar da referência feita por Marías. Mas o ponto central dessa discussão não é sobre o estilo literário de Marías ou de Balzac – pelo menos não necessariamente -, e sim sobre o mundo histórico que cerca a feitura de cada uma dessas obras literárias.
Por “mundo histórico” entendo mais do que um contexto que somente cerca o escritor, se trata, mais especificamente, da realidade que produziu a literatura, uma vez que produziu, primeiramente, também o sujeito. Não me tomem por determinista, não acho que o ambiente cria o sujeito, mas o sujeito não surge senão em um ambiente, i.e., em condições concretas, que podem ser analisadas e discutidas em caráter dialético com a obra, revelando importantes informações sobre ambas.
Balzac prezava por uma observação perspicaz sobre seus personagens, investigava-lhes tanto em sua individualidade quanto diante de quadros sociais e históricos mais amplos, que notassem a pertença a determinadas classes e como essa ambientação existencial se expressava nos costumes, valores, ideias, vestimentas, atitudes e constituição espiritual que eles apresentavam. Arguto observador de sua realidade, Balzac foi autor de obras que são tidas até hoje como ricos e expressivos documentos históricos sobre a burguesia francesa e sobre o século XIX nos embates sobre a ordem em construção naquele período pós-Revolução Francesa e de constituição da civilização burguesa.
Marías, a julgar por Os enamoramentos, investe muito mais na exploração introspectiva de seus personagens, pesando-lhes o estado de espírito, a inclinação psicológica para seus atos, os conflitos interiores que envolvem cada decisão e cada ação. Seus personagens, portanto, mais do que tipos que emblematizam grupos sociais, modos de vida ou visões de mundo, têm seu perfil psicológico explorado a fundo. As histórias de Marías lidam com uma sensibilidade emocional que, pelo caráter de sua exploração, se voltam mais aos indivíduos e em sua conduta diante de situações pontuais diante das quais são postos.
Chama a atenção, portanto, como por debaixo dessas questões de estilo e essas preocupações estético-literárias encontram-se diversas transformações históricas. O mundo do qual Balzac nos fala é muito diferente do mundo no qual escreve Marías. A comparação é de difícil execução principalmente porque a concepção de literatura dos dois escritores é distinta. Tanto quanto diferenciações de caráter particular – entre os dois autores – existem diferentes solos históricos a lhes condicionarem a escrita, a conduta, as ideias. Certamente que a relevância do indivíduo perante a coletividade é mais forte na realidade de Marías do que o era na de Balzac. O delineamento dos grupos sociais e de seus costumes, também, era mais claro a Balzac por uma série de motivos – entre os quais se encontra o escamoteamento das divisões sociais e sua concomitante exploração através de um sem-fim de mecanismos sociais, políticos e econômicos. A ênfase da literatura realista e das explorações introspectivas modernistas são profundamente diferentes no século XIX e no século XXI, de modo que os homens de letras se posicionem diante do cânone e diante de suas incumbências de forma diferente.
O mundo passou por caóticas mudanças, o papel do narrador na literatura foi contestado e reelaborado, e devido ao estilhaçamento de diversas possibilidades de experiências de caráter coletivo, as apreensões da realidade também sofreram transformações, conscientemente ou não. Não se trata – necessariamente – de uma escala de qualidade, mas sim da percepção de que diferentes tempos carregam diferentes questões e criam as condições para diferentes leituras. Se particularmente prefiro Balzac a Marías, isso se refere mais a um gosto pessoal do que a uma evidência objetiva de qualidade. Ao dizer “pessoal”, me refiro a uma acepção ampla em relação a um conjunto de princípios epistemológicos, políticos, filosóficos, morais e literários em constante dialética com a sociedade que o cerca, e não “pessoal” no sentido de algo que emana e termina no indivíduo.
Por conta disso, creio fazer-se necessário cercar ambos – os escritores, suas técnicas narrativas, suas concepções de literatura, suas posições políticas, o mundo que os cerca, a história que os precede etc. – de todas as perguntas e possibilidades interpretativas possíveis, pois é nessa dialética que, a meu ver, a literatura deixa de ser “só” literatura.