Hoje publicamos quatro poemas inéditos de Cidade menor, próximo livro de Julia Raiz, autora de Diário: a mulher e o cavalo (Contravento Editorial, 2017) e p/ vc (Megamíni, 2019), coeditora dos projetos Pontes Outras e Totem & Pagu – Firrrma de Poesia, integrante do grupo de escrita Membrana, pesquisadora e tradutora.
cidade vazia sempre cheia de 190
num parque aquático por cima da grama
embaixo uma grande panela um lago redondo e fundo
dois policiais soltam os cavalos que montavam eles vão direto
pra água são enormes obeliscos gigantescos brincam e se banham rolam
e jogam água um no outro um deles atravessa o lago
como se fosse uma poça d’água em alta velocidade
passa ao meu lado tenho medo atrás de mim um ônibus da brasil sul
faz a curva negligente e cai na água censuro o motorista
ninguém deve virar assim tão rápido
deixo meu chinelo e sutiã na grama preciso achar um orelhão
entrar em contato com as famílias não tenho dinheiro preciso mostrar
meus peitos e balançá-los pra dois funcionários do parque aquático
pra que eles me paguem em fichas parece que estamos de volta aos anos 90
cidade meridiano de sangue
estou numa encruzilhada eu sei mas saber não torna nada mais fácil
me disseram que é preciso estar aqui completamente eu preciso me comprometer com todas essas escolhas que fiz é difícil ter pulmão no escuro e a faca
na mão não serve pra nada imagino mães segurando pratos vazios
prestes a pular elas gostariam de provar que minhas neuroses são infundadas mas do chão continuam saindo lagartos famintos em busca de ovos eles agora entram por onde
antes não se atreviam
tenho imensa inveja deles do seu desespero da fome que é real e existe e é a única
força motriz dos seus corpos
cidade assionara souza
a nara não é, está doente
ontem foi dia das mães ela fica imaginando uma vida diferente da sua
agora quem escreve por ela é a luisinha
do primo basílio que por sua vez é do eça de queiroz
nessa rodada luisinha não se imagina numa vida de amante
quer ser uma personagem de anime que usa o karaokê pra cantar heavy metal
e falar mal do chefe que é um porco (não é sujo, só é um porco)
luisinha não é, está uma raposinha chamada retsuko
retsuko também se imagina outra
uma cantora chamada hatsune miku
hatsune miku não é, está um software
criado a partir da voz de uma atriz (luisinha não sabe seu nome, muito menos nara)
o show da hatsune miku sempre fica lotado
ela é um holograma de cabelo turquesa (o google prefere azul-piscina)
hatsune miku, o som do futuro, não queria ser ninguém
porque não é uma pessoa
só pessoas querem ser outras pessoas
seu trabalho means something em outra língua
significa algo
uma das meninas da plateia gostaria de matar toda a população chinesa e coreana
com um simples avada kedrava
pra que eles caíssem duros no chão
deita a cabeça e põe a língua pra fora provocadora
como se fosse um ser globalizado e pudesse usar um sinal assim tão universal
logo ela que é baita fã da disney sea
cidade sagrada
pequenos vasos de costela de adão e o céu que vai altíssimo
na estrada os ônibus sobem mas desta vez também descem alucinantes
é difícil não ser esmagada pelo volume das dobras
ah a maneira com que os poemas nos ensinam a morrer você nunca vai adivinhar
a não ser que veja um peixe sem se debater no chão apenas contente por estar ali
atravessar a estrada sentar-se no balcão entre os homens imundos avistar um igual acenar dirigir-se a ele assim se sai da personagem assim cai tudo por terra
parece que em matéria de sobrevivência é preciso fingir que não se pode fazer nada
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