Eu tinha outro plano para esta coluna, eu tinha uma outra coluna quase toda na minha cabeça, mas hoje, quando sentei na beirinha de uma pedra muito alta e me preparei para saltar no mar aberto, pensei: “ok, eu vou precisar escrever sobre isso”.

Entre as muitas coisas que eu não sabia sobre a Croácia, é que nos últimos anos ela recebeu uma espécie de esquadrão da moda e virou uma Ibiza meets sul da Itália, só que nos Bálcãs. Eu sabia que as praias eram lindas, então me programei para passar alguns dias nelas, mas não sabia que estariam povoadas de mulheres de maiô branco e chapéu dourado e adolescentes americanos que lambem vodca em barrigas de garçonetes. É um mundo cheio de descobertas.

Enfim, se você consegue desviar do vigésimo bar de música “lounge” , a coisa toda tem um charme de Mediterrâneo, de vontade de largar tudo e viver de andar de bicicleta e comer peixe fresco e azeite em ruazinhas apertadas. Mas com um pouco mais de emoção; os Bálcãs são especialistas em deixar tudo com um pouco mais de emoção.

Você pode escolher entre praias de areia, ou pedrinhas, ambas bonitas, ou você pode ficar em encostas que formaram plataformas perfeitas para estender uma canga – obviamente a melhor opção. O legal dessas encostas é: 1 – o isolamento. Há outras pessoas na praia, mas elas estão em outro “andar”, você não pode vê-las, é quase a experiência de uma praia deserta. 2 – pular no mar.

Você não precisa pular, é claro. É possível descer, e seres muito preocupados com a segurança alheia construíram plataformas com escadas de piscina. Você desce, mergulha confortavelmente no mar quase aberto e volta. Isso é legal também: o mar é muito mais fundo perto dessas encostas do que em uma praia normal. Mesmo que você desça com a segurança da escada, há uma pontada de medo de se estar no mar, essa coisa enorme e funda e imprevisível. No mar de verdade, sem a segurança de ter água só até o joelho.

Mas é bem mais legal pular.

Confesso que não foi uma decisão que tomei imediatamente. Eu me acomodei em uma pedra apenas para tomar sol e ler um livro. Na primeira vez que o calor me empurrou para água, usei a escada e nadei cuidadosamente para longe dela, sem esquecer que era o mar aberto. Eu amo o mar, nada me faz tão feliz quanto a a sensação de água gelada e salgada, mesmo. Não serve piscina, cachoeira, rio, lago, é algo especial com o mar. “I account it high time to get to sea as soon as I can“, algo assim. Mergulhar longe da segurança da areia aumentava esse sentimento ao mesmo tempo que me dava um certo medo. Eu não dava pé, e se uma onda viesse? E se eu batesse em uma pedra? Se a corrente me carregasse?

Mas há um motivo pelo qual andamos em montanhas-russas, pulamos de paraquedas ou saltamos de bungee jump. Existe algo de atraente no medo. Existe uma certa medida de medo, antes de ser paralisante, mas suficiente para produzir adrenalina que é atrativa, sedutora mesmo. Sentir um pouquinho de medo é o trampolim para querer sentir um pouco mais.

Então eu vi, meio distantes, um grupo de adolescentes franceses pulando na água das pedras mais altas. E uma menina que soava australiana pedindo que a amiga não errasse o momento da foto. Eu também queria fazer isso.

Mas é uma má ideia, certo? A água é transparente o suficiente para que eu veja que não vou bater em uma pedra enorme, mas e se eu erro o cálculo? E tem o vento, a curva de queda, todas aquelas coisas que não sei por que jamais prestei atenção em uma aula de física e que poderiam me empurrar com a cara nas rochas. E se eu caísse de mal jeito e quebrasse o pescoço? Eu estou viajando sozinha, quebrar um dedo já seria desastroso. E depois teria que nadar até a escada para sair, não era tão perto e é o mar aberto!

Mas não é que eu precisasse passar por cima desses poréns. Eles me apareciam mais como coisas com as quais eu deveria estar preocupada e que deveriam me impedir de fazer o que eu estava prestes a fazer. Como se uma parte do meu cérebro dissesse “taaaaalvez você devesse ser um pouco mais responsável e não sair pulando de todo penhasco em uma praia bonita que vê”. Bobagem, cérebro, penhascos foram feitos para isso.

Me sentei na beira da pedra. É engraçado esse momento em que na superfície você ainda está em dúvida sobre o que vai fazer, mas algo mais no fundo já decidiu. Eu ainda me perguntava se iria mesmo pular enquanto meus pés se apoiavam no lugar certo, prontos para fornecer o impulso necessário.

Pulei. Por instinto meu corpo se enrolou em uma bola e antes que eu pudesse notar estava indo para o fundo da água. Houve um microssegundo de pavor “e se eu não voltar pra superfície?” E então eu estava respirando. Eu queria fazer de novo.

É interessante sentir medo, porque é mais ainda a sensação de ter feito algo apesar do medo. É claro que eu ia pular, qualquer um que me conheça um pouco sabe disso, o que não quer dizer que não tive medo. E no minuto seguinte a ter feito algo de que tinha medo é como se eu pudesse fazer qualquer coisa.

Acho que adrenalina deve ser a substância mais viciante de todas que já experimentei. Mas não só a que aparece quando o carrinho da montanha-russa faz uma curva perigosa, a que vem da sensação de estar realmente fazendo algo que eu não deveria fazer, algo que até eu em algum momento achei uma má ideia. Mas não foi.

Eu meio que me sentia como se tivesse acabado de fazer sexo. É a melhor comparação que consigo. Tanto que voltei para meu lugar na pedra, acendi um cigarro e fiquei ali. Olhando o mar, ainda sentindo uma certa eletricidade formigar pelo corpo e olhando para o mar tentando calcular o quão alto era aquela pedra. Não importa, era alta.

Eu tenho viajado minha vida toda. Diz a anedota familiar que eu aprendi a andar em Buenos Aires e li pela primeira vez enquanto estávamos em um carro abafado cruzando o deserto em Israel. Acho que desde que brinquei com crianças que não falavam minha língua, minha parte preferida segue sendo essa: o momento em que o desconhecido, o estranho, o nunca visto, te assustam. E você respira fundo e vai mesmo assim.

Também tive medo quando peguei o trem noturno entre Budapeste e Belgrado. Tive medo antes do meu balão levantar vôo e quando estava escalando pedras na Turquia. Pensei duas vezes antes de colocar várias comidas na boca. Considerei se era mesmo uma boa ideia virar uma dose daquela coisa alcoólica dentro de um galão de água que me ofereceram em Sarajevo. Ou pegar táxis na Bolívia. Ou cruzar Cuba em um carro imundo.

Todas elas foram. Ótimas ideias. Há um pânico único no momento em que você olha uma placa e sequer consegue entender o alfabeto. Quando entrei em um shopping de subúrbio no Cairo e vi dezenas de chadors e hijabs de todas as cores e estampas, eu quase me senti a deriva no mar segurando um pedaço de madeira. Aquele não era meu mundo. Mas existe algo incrível além do pânico, quando você se comunica em gestos com o garçom e aceita o almoço surpresa que ele vai trazer, quando a mulher na porta da mesquita te ensina a amarrar o véu em volta do rosto.

Quando você dá um impulso e mergulha de uma altura considerável no mar da Croácia.

Depois disso, esperei o vento me secar um pouco e saí para um museu, ainda claramente molhada e cheia de sal. A moça da bilheteria deve estar até agora tentando entender por que raios aquela menina que apareceu no fim da tarde estava sorrindo tanto.