O britânico W. H. Auden é sempre referido como um dos grandes nomes da poesia do século XX, porém acredito ser desconhecido ainda em terras brasileiras. O motivo é o mesmo pelo qual a maioria dos autores não é lido por aqui: falta de tradução ou de edição. Auden, no caso, é mais facilmente acesso pelo volume bilíngue de poemas editado pela Companhia das Letras, de tradução conjunta de José Paulo Paes e João Moura Jr. Trata-se de uma recolha interessante para conhecer um poeta em suas diversas facetas, poeta que oscilou tantas vezes de interesses quanto de maneiras de se comportar diante dos fatos da vida.

Em termos históricos, Auden viveu em uma época particularmente interessante, de muitas atribulações para a Europa. Além disso, nunca se portou como um cidadão estritamente europeu, já que viveu e passou por diversos países, sempre atuando de forma enfática no contexto local. Nascido em 1907, Auden se mudou para Berlim em plena República de Weimar, a fim de fugir da Inglaterra conservadora. Também atuou no lado republicano da Guerra Civil Espanhola e viajou pelo Extremo Oriente antes de se exilar nos Estados Unidos em fuga da Segunda Guerra Mundial. Tudo isso sempre acompanhado do também escritor Christopher Isherwood, seu amigo e eventual amante. Toda essa experiência de vida, é claro, é fundamental para entender as variações na matéria de sua poesia.

Para além do aspecto biográfico, é interessante deixar clara aqui minha impressão geral da poesia desse autor, sob o viés dado pela seleção editada pela Companhia das Letras. Apesar da aparente vida conturbada, a poética de Auden, ou seja, seu “estilo”, me parece muito mais constante do que poderia ser. A matéria religiosa, em especial protestante, de sua escrita também auxilia para que sintamos uma redenção através da leitura dos poemas. Por poemas como “Lutero”, podemos ver que, apesar da confusão do mundo lá fora, tudo reflete uma espécie de contentamento ao eu-lírico:

 

Consciência pronta a ouvir o ronco do trovão,

Viu o Diabo no vento, todo atarefado

Entrar em campanários, passar sob o vão

Da porta das freiras e doutos em pecado.

 

O desastre, de que modo evitá-lo, como

Aparar o espinheiro dos enganos do homem?

Carne, um cão silente a morder o seu dono;

Mundo, um lago mudo que os filhos seus consome.

 

O estopim do Juízo queimava em sua mente:

“Fumiga esta colmeia de abelhas, Senhor:

Tudo – obras, Sociedades, Grandes Homens – mente.

O Justo vive pela Fé…” gritou, temente.

 

E quem, homem e mulher do mundo, o temor

Ou zelo nunca atormentou, ficou contente. (trad. José Paulo Paes)

 

Ao mesmo tempo, em poemas como o longo “Espanha, 1937”, vê-se a angústia pelo futuro, pela “história em vias de derrota” diante das dúvidas do conflito popular, da própria Guerra Civil. Apesar da imagem de enfant terrible da poesia inglesa, Auden pode nos parecer hoje não muito transgressor em conteúdo e expressão, porém, por pequenas comparações como essa que sugiro entre poemas, vemos que sua poesia estava em constante transformação.

Auden não era um mero carola que escrevia versos. Ainda em “Espanha, 1937”, temos um contraste bem marcado entre o “ontem”, referência desde o início do poema, e um “amanhã” que surge. Lê-se primeiro:

 

Ontem todo o passado. A linguagem do tamanho

Expandindo-se à China por rotas de comércio; a difusão

Do ábaco e do cromlech;

Ontem o cálculo da sombra em regiões solares.

 

Ontem a segurança avaliada pelas cartas,

O vaticínio da água; ontem a invenção

Da roda de carro e do relógio, a doma

De cavalos; ontem a azáfama do mundo navegante.

[…] (trad. José Paulo Paes)

 

Após essa inicial louvação do engenho humano, ou ainda da ciência europeia diante da natureza do mundo em descoberta, a guerra parece colocar a evolução da civilização em xeque diante de um “amanhã” que surge de um “hoje”, resumido assim:

 

[…]

Amanhã, para os jovens, poetas explodindo feito bombas,

O passeio à beira do lago, o inverno de perfeita comunhão:

Amanhã a corrida de ciclistas

Pelos subúrbios nas tardes de verão; hoje porém a luta.

[…] (trad. José Paulo Paes)

 

A luta do hoje por um amanhã mais consolador, apesar de o eu-lírico afirmar, mais adiante, que as “estrelas estão mortas”. O poema também acaba, mas a dúvida do leitor não: temos aqui a mesma visão de contentamento de “Lutero”? A angústia é o que aparece, acima de tudo, em “Espanha, 1937”.

Auden, ao longo de todos os textos reunidos em Poemas, de tradução valiosa, sintetiza uma ânsia pela vida em paz, sem culpa, digna do cristão que é, porém não deixa de notar que, nas agruras da luta cotidiana, ainda resta algo que impede o contentamento total. A motivação de sua escrita está, com certeza, nessa dúvida quanto à completude das ações humanas, ou melhor, das possibilidades divinas em meio aos humanos. Ainda assim, Auden se levanta do leitor dos clássicos como um mistério.