Se existe algo que se assemelhe a um mito fundador da tradução é a história da Torre de Babel: a menção bíblica a uma torre que foi construída tão alta que D’us resolveu não permitir que fosse completada, descendo para confundir os idiomas humanos – que, até então, falavam todos uma só língua. Existem inúmeras fontes e adendos para história, em tratados exegéticos rabínicos, em livros bíblicos apócrifos e até mesmo algumas versões distintas em fontes islâmicas.

No livro do Gênesis a história é mencionada muito brevemente, em uns poucos versículos, mas nessas outras fontes fica bastante claro que a construção dessa torre (possivelmente uma zigurate) tinha o objetivo de desafiar D’us.

Um historiador islâmico do século XIII, Abu al-Fida, relata que Nimrod, primeiro poderoso soberano da Terra e bisneto de Noé, mandou construir a torre como um ato de rebeldia. D’us a destrói e faz com que as pessoas falem idiomas diferentes – no relato, exatos 72 idiomas. Apenas ao patriarca Eber e sua família, que se recusaram a participar da construção da torre, é dado manter o idioma original, o hebraico.

Não existissem idiomas distintos, não existiria a necessidade da tradução. Mas, se a diferenciação dos idiomas foi uma punição, qual o lugar que a tradução ocupa? Seria um ato de rebeldia (ao se tentar, de alguma maneira, anular o castigo) ou, ao contrário, um ato de contrição, uma espécie de tardio pedido de desculpas (mostrando um desejo pelo mundo que existia antes da separação dos idiomas – e seguindo um caminho lógico um pouco invertido, antes da torre)?

A única resposta que posso dar sem deixar de ser sincero é que não faço ideia. Talvez com tempo e paciência eu pudesse fazer um trabalho de pesquisa longo, exaustivo e totalmente inconclusivo a esse respeito, utilizando fontes rabínicas e as mais diversas teorias da tradução. Pensando bem, talvez um dia eu faça. Mas não vem ao caso agora.

A questão aqui é que, independente de como se possa encarar a tradução, ela é necessária. Ninguém no mundo sabe 72 idiomas – e as coisas mudaram desde os tempos de Nimrod, e hoje considera-se que existam cerca seis mil e novecentas línguas.

A literatura é o exemplo mais óbvio, mas precisamos da tradução para ter acesso a inúmeras outras coisas. Cinema, televisão, teatro. Manuais de instrução. Para as coisas mais básicas, em algum momento a tradução foi necessária: se vamos ao colégio e aprendemos sobre o Darwinismo ou sobre a fórmula de Bháskara, vale lembrar que nem Charles Darwin e nem Bháskara II escreviam ou falavam em português. As bulas dos remédios, via de regra, são traduções. E a lista pode se prolongar infinitamente.

Por isso, por mais que existam adágios como o infame “traduttore, traditore” (tradutor, traidor), a existência (mesmo que metafórica) de Babel faz com que a tradução seja uma das atividades humanas mais difundidas, mais importantes e mais desapercebidas de todas. Desde que Nimrod teve a ideia de construir aquela gigantesca torre vivemos em um mundo de traduções – e a modernidade só intensificou isso.