Pode parecer contraditório falar de uma casa malsã. Como o lugar em que alguém deveria se sentir acolhido é maléfico ou insalubre? No nosso imaginário, a casa como lar deveria ser um espaço para nos sentirmos protegidos, como se fôssemos incorporados à construção. No entanto, não falta literatura em que a casa se torna prisão, em que o conforto se torna angústia. Esta casa malsã, de Sergio Maciel, contém um pronome no título, pronome este que nos aponta um espaço, como num espetáculo de teatro: um local especial cuja revelação é feita aos poucos, pelo diálogo entre as personagens. E a casa malsã a que Maciel se refere em seu livro, a ser lançado neste mês pelas Edições Macondo, certamente é mais complicada do que poderia se esperar, mas também reconhecível para nós, brasileiros.

Esta casa malsã é uma espécie de reescrita d’As fenícias, tragédia de Eurípides acerca do conflito entre os filhos de Édipo pelo poder de Tebas. Com prefácio de Guilherme Gontijo Flores, posfácio de André Capilé e ilustrações de Patrícia Lino (ver acima), o livro se inicia pelas epígrafes de Anne Carson, Simone Weil e Milton Nascimento. Em seguida, introduzem-se as personagens, como numa peça. Elas são Édipo, Antígone, Jocasta, Polinices, Etéocles, o mensageiro e o coro, cada um com suas definições. Tudo se passa ao redor de Tebas, a mítica cidade grega que é matéria para tanto desastre na literatura clássica. Dentre as personagens, há aí uma pequena diferença em relação a traduções de Sófocles e Eurípides em português: temos Antígone (similar ao grego), e não Antígona. É definida como “filha” e “mulher”, além de “terrorista”, como no prefácio de Carson a Antigonick. A partir daí, caminhos para a compreensão do poema aparecem para nós, o que se evidencia ao longo de sua leitura.

Apesar da apresentação de personagens, há uma diferença marcante em relação a uma peça: a ausência de rubricas. É um primeiro indício de que Esta casa malsã se constrói nessa fronteira da poesia e do teatro, não sendo precisamente algo destinado para o palco (ainda que não deixe de ser possível fazê-lo). De início, temos Édipo se lamentando pelo seu conhecido fardo, o que acontece ao longo de todo o texto, como quando pergunta a Jocasta o porquê da perda de sua casa, de seu lugar, e também a razão para não ir para o “breu”, uma das muitas imagens de escuridão evocadas pela personagem:

em sucessão casas crescem e rangem
sucumbem e dilatam
por tanta pena casas nascem
ou cessam mas por que você
amiga nos males
meu trilho talha pra fora do torto?
se o exílio no breu é meu encargo melhor a ínvia via
que da vida me arranque
e traga à terra e ao céu o alívio de mim

De maneira distinta d’As fenícias, o poema de Maciel dá bastante espaço para Édipo, que serve como um contraponto do conflito de Etéocles e Polinices, mais presente no final do texto. É uma personagem que parece apagar o sofrimento de Jocasta e Antígone, fiéis ao antigo rei de Tebas. É nítido como no início Antígone deseja se comunicar com o pai (e irmão, de certo modo) para encorajá-lo para a fuga e para aceitar sua ajuda. Entretanto, Édipo está sempre muito centrado na sua própria dor e perde aos poucos a habilidade de raciocinar de forma mais coerente. A narrativa em si parte de um momento em que Édipo e Antígone saem de Tebas sem que Etéocles e Polinices estejam mortos, bem como Jocasta. Ao mesmo tempo, os dois irmãos que brigam entre si pelo trono, filhos de Édipo e Jocasta, também parecem já estar mortos, são cadáveres em guerra. Entre esses conflitos, o coro, “aquilo que falta” na definição inicial, nunca é de fato ouvido, talvez pela falta de um corifeu (seu porta-voz na tragédia antiga) ou pelo fato de que os dominantes, aqueles que disputam o poder em Tebas, realmente não estão interessados nele. A situação se assemelha à de Lícidas, livro recente de Leonardo Antunes, em que o povo é afastado do conflito principal e o corifeu é assassinado.

Apesar da gravidade do assunto, a ironia também é um recurso utilizado ao longo de Esta casa malsã. Ela se evidencia desde o estranhamento das referências à natureza brasileira até a suposta precisão da filologia para o oráculo de Delfos, também presente nas lacunas inventadas para o texto, que criam uma aparência de um manuscrito antigo que foi editado. Outro aspecto a ser notado é o modo pelo qual as personagens dialogam (ou melhor, não dialogam) entre si. A coloquialidade do coro, sempre direto em suas considerações, contrasta com o circunlóquio de Édipo e a falta de comunicação com sua própria família. Embora fale com Antígone, ele parece realmente não lhe dar respostas, mantendo-se imperativo em suas decisões. Ele muitas vezes se refere a si mesmo na terceira pessoa, como se fosse a referência única do sofrimento. Antígone, em certo momento, aproveita-se do mesmo recurso, mas sem sucesso. Sua determinação em resolver a situação do pai acaba quando percebe que ele não constata que se colocou sozinho na situação em que se encontra, o que a faz atestar o acaso da catástrofe que vivem:

o acaso fazemos nós mesmos transformar-se em catástrofe
e que podem os deuses ajudar nessas coisas
se nós próprios vacilamos nossa sorte?

A semelhança do fardo de Édipo com um processo judicial também é exposta por ela, quando diz que:

teu processo cabe somente a ti mesmo
nenhum deus partícipe
como juiz é possível ver tua inocência

Embora seu pai tenha o maior número de falas no poema, Antígone se destaca em muitos momentos pela sua argumentação e pela dedicação em salvá-lo. Jocasta, sua infeliz mãe, também voltada para soluções possíveis para a intriga entre Etéocles e Polinices n’As fenícias de Eurípides, surge no poema junto com o mensageiro, que assim anuncia o conflito:

não são ameaças o mal é chegado
estão furiosos
a loucura emoldura os corpos
ninguém que não édipo poderá suspender a guerra civil
somente o sopro de tuas palavras pode arrefecer os peitos

Édipo, no entanto, nada faz a respeito disso. Todos a sua volta desmoronam junto com ele, que apenas insiste em se declarar uma vítima e dizer que os tebanos nada sabem:

o amor à justiça
o amor paterno
conhecem eles acaso tais coisas?
sede
têm
de poder de sangue lavando a poeira

Ao fim, tudo se mantém ao redor de Édipo, ainda que Antígone e Jocasta desejem reverter a situação. Etéocles e Polinices, combativos por natureza, preferem se destruir em vez de resolver a crise de maneira pacífica. Além de esse cenário de assolação nos remeter à tragédia grega, por Sófocles e Eurípides, também nos faz lembrar indiretamente de outras apropriações do teatro e da mitologia antigas, como Anne Carson, em Antigonick (2012) e suas outras experiências de reescrita e tradução. Entretanto, a escritora canadense trabalha mais a ligação entre as mulheres em meio ao desastre (no caso, posterior aos acontecimentos retratados no livro de Maciel), enquanto Esta casa malsã se concentra na classe dominante de Tebas a se definhar junto com o coro, impassível, ainda que vigilante.

Há ainda outras reescritas de textos clássicos que seriam paralelos possíveis, como Jean Giraudoux, por La guerre de Troie n’aura pas lieu (1935), Jean Anouilh, por Antigone (1944), e mais recentemente Natalie Haynes, por The Children of Jocasta (2017). Contudo, gostaria de destacar o fato de que as peças de Giraudoux e Anouilh foram compostas em um período de grandes conflitos, no entreguerras e no fim da Segunda Guerra Mundial, respectivamente. A motivação para a escrita do livro de Maciel em um momento no qual o Brasil não participa de qualquer batalha militar no plano internacional vem, acredito eu, de outro fator bélico do nosso cotidiano. O que ocorre, de modo não muito diferente do país hoje, é que o povo mergulha num abismo social junto com Édipo e sua família. A tragédia grega é com frequência montada e reescrita pelo diálogo entre antigos e modernos, por uma relação que nos atualiza a cultura de séculos atrás e, ao mesmo tempo, nos leva para mais perto de um velho povo. Da sua maneira, Esta casa malsã parece nos apresentar um tipo diferente de montagem, que acontece dentro do poema e se mantém instável como a casa nele presente, situada entre os tempos, numa escuridão que nos angustia.


FICHA TÉCNICA
Título: Esta casa malsã
Autor: Sergio Maciel
Páginas: 64
Editora: Macondo