por Samir Machado de Machado (*)

Numa aula de criação literária, na qual o Assis Brasil falava de enxergar o mundo com os olhos do seu personagem, tratou também das limitações pessoais de cada autor: disse que não conseguiria, por exemplo, escrever sob o ponto de vista de Hitler.

Lembrei que, em 2013, quando comecei a escrever Homens elegantes, sabia que pela natureza da história que queria contar (uma aventura calcada na ficção popular do início do século XX), estaria na seara maniqueísta dos valores binários, de mocinhos contra vilões, o justo contra o injusto, etc. E me ocorreu que, sendo meu protagonista assumidamente gay, o grande vilão da trama precisava de um nome que, no momento em que o leitor batesse o olho, soubesse: esse sujeito é a homofobia encarnada, esse sujeito não presta. 

Assim surgiu o “Conde de Bolsonaro”. Porque, em 2013, e desde muito antes disso para qualquer um que não vivesse numa caverna, ele era apenas uma figura notória não só pela ignorância como pelo parasitismo. Estava a vida toda na vida política sem fazer nada, dando audiência para programas de humor político ao incorporar um retrato pastelão do pior que a política nacional gerava. Era alguém que se regojizava na própria crueldade, que cuspiu no busto de Rubens Paiva, que exaltava a memória de um maníaco que torturava mães em frente aos filhos, que dizia que a ditadura devia ter matado 30 mil, e que, sempre que podia, fazia tiradas homofóbicas, na época em geral direcionadas ao deputado Jean Wyllys, então único parlamentar assumidamente gay no congresso. Dava entrevistas dizendo que se tivesse um filho gay, preferia-o morto, e que um vizinho gay desvalorizaria seu imóvel, e isso que nem entramos no aspecto criminal comum: sua antiga e notória ligação com a máfia que, no Brasil, ganha o eufemismo de “milícia”. Ao mesmo tempo, ele era uma figura que, pelas óbvias limitações cognitivas, parecia fadada a ser somente aquilo ali mesmo, um alívio cômico bizarro de programas de humor que apostavam no choque pelo politicamente incorreto, um medíocre incapaz de ir além da própria mediocridade.

E isso me pareceu uma escolha óbvia para o nome do meu antagonista. Para um personagem caricato e absurdo, uma referência real igualmente caricata e absurda. Nesse estilo de enredo, não esperamos grandes motivações de Goldfinger, Blofeld, Rochefort, ou mesmo do Professor Moriarty (que, embora gênio do crime, não tem uma motivação realmente profunda para seus atos, além da pulsão de vilania). 

As histórias populares, no final das contas, servem como vazão para os instintos de vida e morte do leitor. Os heróis ficam com a mocinha (ou com o outro mocinho, no caso de Homens elegantes) e geralmente derrotam o antagonista naquilo que meu amigo Rodrigo Rosp chama de “morte de vilão de filme”, o que, confesso, é sempre uma delícia de se criar e escrever. Eros e Thanatos. Não por coincidência, toda fala do Bolsonaro real, até hoje, tem igualmente referências sexuais ou à morte. 

Bem, meu antagonista era caricato, algo que algumas resenhas perceberam, e eu realmente não me incomodo que o façam, pois era para ser assim mesmo. A caricatura era o máximo que eu conseguia me aproximar dele.  Ele ser eleito não parecia possível, até que foi. Um caso emblemático foi o de uma simpática senhora que organizava saraus literários aqui em Porto Alegre, e que certa vez me chamou para falar do Homens elegantes (livro que ela dizia ter adorado). Dois anos depois, convertida ao bolsonarismo, ela me bloqueou nas redes sociais quando tentei explicar que Ursal não era uma coisa real, tampouco “kit gay”. Notei que a coisa estava ficando estranha. Parentes e (agora) ex-amigos aos poucos embarcaram no mesmo delírio. Minha madrinha me enviou um vídeo homofóbico no dia da eleição. E entendi que havia uma compartimentalização ali, que torna possível uma pessoa torcer pelo Indiana Jones nos filmes, mas votar nos nazistas no mundo real. Que há inúmeras Madames Defarge só esperando para poder tricotar nomes para a guilhotina. Ou quem torça por Harry Potter, mas adoraria um cargo no Ministério da Magia de Voldemort, para ficarmos numa referência mais millennial. Talvez seja esse o problema do maniqueísmo da ficção popular? Que os aspectos humanos que não conseguimos colocar nesses personagens caricatos não são qualidades redentoras, mas o que os fazem passar despercebidos no mundo real?

Talvez o que eu então não tenha entendido foi que aquele discurso do atual presidente de que “minorias devem se submeter ou desaparecer”, simplista e simplório como o de um vilão de gibi, era perfeito para seu eleitorado. A máscara de “combate à corrupção” foi a forma com que seus eleitores encontraram para dar vazão não só a preconceitos homofóbicos, racistas e misóginos mal disfarçados. como a seus próprios impulsos destrutivos. Foi um voto pela eliminação do outro, que, por razões inesperadas (no caso, uma pandemia), acabou se tornando um voto pela eliminação de todos. Porque você não dá poder para um paranoico desequilibrado esperando que ele se comporte de outra forma.

Admiro os que tentam compreender esse outro, para criar pontes que nos resgatem da situação atual em que nos metemos. Como autor de ficção popular, reconheço minhas próprias limitações. E, sinceramente, não acredito em nazista arrependido. O único arrependimento do ex-nazista é o insucesso.


(*) Samir Machado de Machado é escritor e tradutor, autor de Quatro soldados, Homens elegantes (Rocco), Tupinilândia (Todavia) e Piratas à vista! (FTD).