Eu gosto de pensar que que sou um propagador e defensor da literatura contemporânea: pelas minhas resenhas aqui no Meia Palavra deve dar para notar a minha preferencia pela literatura que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial, e uma tendência para ler escritores ainda vivos.

Não é espantoso, então, que eu seja de certa forma um ‘opositor’ da literatura ‘clássica’: eu sei que Shakespeare, Cervantes e Camões são importantes. Eu reconheço o valor – e a qualidade – de um Machado de Assis. Mesmo considerando rima e métrica algo um pouco rançoso, não deixei de ler Álvares de Azevedo. Li e apreciei todos eles. Mas acho que bons autores vivos são mais importantes que bons autores que viveram em um mundo completamente diferente do nosso.

Existe, porém, um escritor do século XIX – e que sequer chegou a ver o século XX – que eu defendo como essencial. Trata-se do russo Feodor Mikhailovich Dostoievski.

Sua obra é extensa, por isso torna-se difícil saber por onde começar. Eu o fiz, meio que por acaso – peguei emprestado de uma amiga atraído pelo título, sem saber exatamente do que se tratava-, por Recordações da Casa dos Mortos.

O livro conta a vida de Aleksandr Petrovich Goryanchikov, um prisioneiro político que é enviado a Sibéria e lá remodela sua visão do homem comum – e da própria Rússia. Pode-se considerar que, em termos, o livro tem um toque testemunhal, um quê confessional, pois Dostoievski foi enviado à Sibéria e, ao ser liberto, tinha mudado suas visões sobre muitas coisas- inclusive sobre a Rússia, seus camponeses e o papel do intelectual na sociedade.

Fiquei realmente admirado com Dostoievski ao ler esse livro, e logo fui à procura de mais. Agora, seguindo indicações, comprara Os Irmãos Karamazov em um sebo.

Se meu primeiro contato com o escritor me cativara com a sobriedade da sua escrita e com a pungência das descrições da vida na prisão, esse segundo teve efeitos ainda mais potentes, apresentando-me a uma infinidade de questões complexas e que só anos mais tarde eu definiria com um pouco menos de incerteza – o complexo de Édipo de Mítia e de Ivã, as questões morais levantadas pela ausência de um deus, a dificuldade de se crer e de existir em um universo em que o livre arbítrio é possível.

Em seguida comprei uma edição de bolso que tinha Notas do Subsolo e Noites Brancas. À essa altura eu já havia me tornado um leitor fiel de todo e qualquer autor russo, e Dostoievski já figurava entre meus favoritos – posso dizer que, junto com Nietzsche e Joey Ramone, ele foi um dos ídolos da minha adolescência.

Noites Brancas, porém, foi uma decepção. Demasiadamente próximo do romantismo – que o próprio Dostoievski me levara a rejeitar – era um tanto quanto piegas. Notas do Subsolo, porém, era o que eu esperava. Cínico, desesperado e amargo, o narrador sem nome  desprezava a sociedade e qualquer forma de idealismo. E eu o reencontraria mais tarde, ao ler Becket e Camus.

De forma esparsa, fui lendo outras de suas obras. Um Jogador  e O Idiota são excelentes livros, que eu considero semelhantes e tratam, essencialmente, de algo bastante atual: o amor e a submissão ao dinheiro. Não foram, porém, tão marcantes.

Crime e Castigo voltou a colocar Dostoievski no topo da minha lista. O conflito moral de Raskolnikov é, talvez, uma das histórias mais famosas e, sem dúvida, uma das mais poderosas de toda a literatura mundial: o estudante que, pressionado pela dificuldade financeira, comete um assassinato e é devorado pela culpa.

O último dos livros do autor que eu li foi Os Demônios, que trata sobre um assassinato cometido por um grupo terrorista de inclinações anarco-niilistas. Esse é um romance extremamente político e filosófico, que pode, quiçá, ser rotulado como profético, além de ser sempre atual – mudam as denominações e talvez os ideais, mas a crueldade permanece sempre a mesma. Esse livro me faz colocar Dostoievski entre os autores mais perturbadores que já li, ao lado de Franz Kafka e Albert Camus.

Bem, talvez eu exagere ao chamar qualquer escritor de ‘essencial’. Talvez eu não tenha lido Dostoievski na sequência ou da maneira correta. Mas é inegável a importância e o poder que a obra do russo tem- ou escritores tão diferentes como William Faulkner, Yukio Mishima e Gabriel García Marquez não o citariam, todos, como uma de suas principais influências.