Quatro vidas, quatro obras: isso é Vida, o volume de quatro biografias escritas por Paulo Leminski (1944-1989), autointitulado “cachorro louco”, ao longo da década de 1980. Inicialmente, faziam parte de um projeto editorial da editora Brasiliense, que publicou os textos separadamente, como quatro biografias independentes. O desejo do autor, porém, era que esses textos fossem um dia publicados em um mesmo livro, Vida, assim como ocorreu post-mortem pela editora Sulina e, neste ano, em reedição pela Companhia das Letras.

Apesar do uso do termo “biografia”, acredito que, para a maioria das pessoas, é realmente difícil comparar esses textos com as biografias que encontramos todos os dias nas livrarias. Leminski não parece ter se preocupado em dar alguma linearidade histórica ou fazer um percurso de vida, com detalhes da vida privada de cada biografado. Como é dito por Alice Ruiz na introdução do volume, esses textos “clareiam a visão da trajetória do poeta”, do próprio Leminski mesmo. Estão mais próximos da ensaística do autor, que trata de temas que são concernentes à sua obra (como em Ensaios e anseios crípticos), do que de um biografismo, de uma descrição da vida de alguém nos moldes clássicos, derivados da historiografia greco-romana. O poeta curitibano certamente tinha noção do que a sociedade considera que seja uma biografia; subverteu o gênero por sua própria vontade.

Essa ideia de “subversão” me vem justamente pelo fato de que, dos quatro biografados, três mal dispõem de informações consistentes ou em grande número sobre suas vidas: Cruz e Sousa, Bashô e Jesus. Como demonstrar a importância dessas três figuras ainda que não tenhamos como descrever longamente suas vidas? Mostramos, é claro, o que ficou de importante delas: suas obras. Quanto me refiro a obras, não digo somente “obras escritas”; Jesus, por exemplo, não nos deixou a princípio nenhum escrito. Tudo que sabemos de suas ideias derivam da Bíblia, dos profetas, daqueles que, muito tempo depois de sua morte, dedicaram-se a descrever seus ideais. Em relação a Cruz e Sousa e Bashô, suas obras escritas são realmente seu legado, mas, além disso, também temos toda a tradição que lhes seguiu. Ela também é matéria para a biografia leminskiana.

Outro fator dessa espécie de subversão vem da apropriação dessas vidas pelo poeta para a compreensão do seu próprio tempo. É notável, por exemplo, no texto sobre Cruz e Sousa, a constante comparação feita entre o poeta simbolista e Gilberto Gil, contemporâneo de Leminski. O mesmo ocorre no percurso de Matsuó Bashô: há grande valorização da tradição do haikai como foi entendida pelos poetas modernistas, como Ezra Pound, e por concretistas, como Haroldo de Campos. Lembremos que o próprio Leminski se dedicou a estudar o haiku por interesse estético, para repensar sua própria criação, o que o levou a produzir também haicais, ainda que ao seu modo. Mesmo Jesus, figura complicada de se retratar por seu caráter sagrado, é lembrado por seu caráter “revolucionário”, popular, bem diferente de como foi estabelecido pela Igreja Católica.

Nessa ordem (Cruz e Sousa, Bashô e Jesus), somos levados a Liev Trótski, um dos três principais líderes da Revolução Russa, juntamente com Lênin e Stálin. Certamente Trótski, ao contrário dos outros biografados, dispõe de muitas informações sobre sua vida, inclusive privada, porém, novamente, não é exatamente isso que interessa a Leminski na elaboração de seu texto. A maior biografia em extensão, Trótski a paixão segundo a revolução, como o título indica, nos oferece um retrato apaixonado do revolucionário ucraniano, judeu, vindo do campo. Através de uma pesquisa bibliográfica considerável, cujas fontes são disponibilizadas ao fim do texto, o poeta nos oferece dados que fazem o leitor reavaliar a posição de Trótski na construção da sociedade socialista.

Ainda que Leminski tenha feito uma pesquisa vasta sobre Trótski, parece se render a certos parâmetros ideológicos da corrente trotskista latino-americana, especialmente nos momentos que reforça suas diferenças com Lênin e Stálin em busca de um “marxismo” em detrimento de um “leninismo” ou até mesmo de um “trotskismo”. Talvez seja apenas uma impressão de leitura, porém o constante destaque dessa ideia, bem como a caracterização do revolucionário russo como um dissidente, nos faz pensar nisso. Em uma época em que o mundo via a certeza da decadência da União Soviética por sua história stalinista, a valorização de uma figura como Trótski certamente demonstra uma posição política da parte do autor, ainda que ele não deixe registrado qual seria sua intenção dessa parte. De qualquer modo, nenhuma biografia é imparcial. Como já foi dito, mesmo os outros biografados Leminski tende a interpretar a seu modo, sem restrições.

Vida é uma leitura válida não somente para aqueles que se interessam pela obra dos biografados, mas também pela criação do próprio autor. Com Cruz e Sousa – o negro branco, temos uma exaltação do poeta catarinense, simbolista pela brancura de seus versos, marginal pela negritude de sua realidade. Bashô – a lágrima do peixe explora principalmente as ligações entre o zen como pensamento, como “filosofia”, e o haiku como arte usada por Bashô como meio de alcance do zen. Na mesma direção filosófico-mística, temos Jesus a.c., que trata da figura cristã conhecida de todos nós, brasileiros, porém sob uma perspectiva social. Também nesse rumo, terminamos com a referida biografia de Trótski, uma reflexão cultural, social e política sobre o século XX que parece reagrupar as conclusões tiradas nos textos anteriores. Vida é certamente um livro essencial para a compreensão de nossa história, de nossa cultura.