Se há algo de indiscutível acerca de Roberto Bolaño, é o fato de que ele se tornou um fenômeno. Dá para fazer o incômodo teste de perguntar para a intelligentsia literária se eles já leram o escritor chileno. A maioria dirá que sim, mesmo que não tenha lido. Bolaño se converteu em item obrigatório na estante de qualquer leitor mais descolado. Ele tem sido lido e reverenciado por gente como Susan Sontag, Bret Easton Ellis, Francis Ford Coppola e Nicole Krauss, para ficarmos só nos norte-americanos. Tanto hype e fogos de artifício afastam os novos leitores, a ponto de muita gente achar que é só isso: publicidade violenta do mercado editorial. Outros, tontos com tanta informação sobre o escritor na mídia, não sabem por onde começar a ler o sujeito. Eis que surge este guia super prático! Tchãrãm!

No momento em que estas linhas estão sendo digitadas (em uma Porto Alegre de 34 graus, calor digno do D.F. mexicano), existem sete livros dele disponíveis no mercado brasileiro. Seis são romances (ainda que alguns possam receber o título de novela) e um é uma coletânea de contos. As suas obras “capitais” (ui, que termo brega), Os detetives selvagens e 2666 já estão disponíveis e receberam uma excelente tradução de Eduardo Brandão, também conhecido por ser o cara com colhões de verter ao português o dificílimo Javier Marías.

Eu comecei lendo Bolaño através dos Detetives, lá por 2007, mas, pensando em retrospecto, esta não foi a melhor porta de entrada. Relendo o romance para a minha dissertação de mestrado, notei que se tivesse lido o livro com algum conhecimento prévio dos temas e do estilo do chileno, ele teria feito muito mais sentido. Então, sem mais delongas, por onde começar?

Recomendaria o Estrela distante. Por quê? Porque é curto (especialmente em comparação com o tijolesco 2666) e porque é o resumo de Bolaño (ou seja, se você não gostar desse, dificilmente gostará dos outros). Está lá a ditadura, está lá o grupo de poesia, está lá a ambivalência moral, está lá a influência da literatura policial. O romance é uma versão estendida de um conto (ou melhor, de uma falsa biografia) contida em Literatura nazi en América e trata de um poeta/serial killer. A relação entre ética e estética, que é uma espécie de norte filosófico de Bolaño, parece sintetizada na complexa figura de Carlos Wieder. Seus livros muitas vezes parecem investigações nesta área cinzenta, na qual cultura e violência se tocam (uma investigação que culminaria, na minha opinião, na obra maestra 2666).

Outra possível porta de entrada é Noturno do Chile, igualmente breve, igualmente acessível. Neste, temos o monólogo desesperado de um padre/crítico literário, às voltas, também, com a ditadura chilena. O monólogo se desenrola em um crescendo até o seu assombroso clímax. Uma curiosidade é que o livro iria se chamar Tormentas de mierda. Eu pessoalmente simpatizo com o título abortado, mas imagino que o livro fracassaria absurdamente com ele. Ah, o que seriam dos escritores sem os editores?

O livro de contos lançado aqui, Putas assassinas, tirando o primeiro conto, é uma coletânea irregular, não muito empolgante, que faz feio perto das outras coletâneas, ainda inéditas no país: Llamadas telefónicas (cuja primeira parte é metaliteratura purinha) e El gaucho insufrible (que traz dois ensaios ótimos no final).

Metaliteratura. Já que usei a maldita palavra, talvez seja de bom alvitre falar um pouquinho sobre isso. Não é metaficção, não tem jogos narrativos do tipo “este é um livro dentro do livro” ou “no final você descobre que o personagem é o escritor”. O que está em jogo em Bolaño é o uso da literatura para falar de literatura. Umbiguismo irrelevante? Um dos riscos desse tipo de ficção, mas, o cabra consegue elegantemente desviar desse abismo. Como? Entendendo que literatura é um fenômeno cultural que faz parte de algo muito mais amplo, e que se relaciona com o mundo de maneiras inesperadas, e às vezes incoerente. E mais: o escritor tem a eterna certeza pessimista de que livros e literatura não servem pra nada, não mudam o mundo, e, no entanto, não consegue parar de escrever ou ler. “Literatura como uma enfermidade”, como o próprio R.B. escreveu em um ensaio. Antes de escritor, Bolaño é um leitor, um leitor obsessivo, desesperado. O resultado disso se nota em sua prosa.

O outro lado do autor é o lado político, quase onipresente. Político em sentido de partidarismo? Necas. Bolaño é esquerdista? Acho que não. Talvez. Direitista? Tampouco. Se bem que… Desconfiado de tudo? Talvez. Sim. Ou não. Algum dia vamos saber ao certo? Acho que não. O autor está morto, só nos restam as suas obras, e as suas obras mais confundem do que respondem. Amuleto, por exemplo, incomoda muita gente, pois parece, em certos pontos, panfletário. Narrado por uma poeta marginal de esquerda, apresenta o conflito do idealismo de uma geração com a realidade latino-americana. Tal tema também aparece com força em Os detetives selvagens.

A pista de gelo, por outro lado, um dos primeiros livros de Bolaño (e, estranhamente, um dos primeiros lançados no país), é mais um exercício de estilo do que qualquer outra coisa. Chega a soar apolítico! Um romance policial narrado em três vozes e situado na Espanha. É divertido e empolgante, mas dificilmente se encaixa nos grandes livros do autor.

Agora que o leitor já está familiarizado com Bolaño, pode encarar os grandes monstros. Os detetives selvagens é um absurdo polifônico. Tantas vozes interagindo, perdendo-se em digressões, todos falando de um assunto que sempre parece fugir, que fica cada vez mais inalcançável. Se o estimado leitor souber espanhol, recomendo que este livro ele leia no original, pelo prazer de observar os diferentes sotaques dos personagens.

Quanto a 2666, tanto já foi dito sobre o livro na mídia (e no Meia Palavra), que talvez não seja necessário falar nada mais. Leia. É tudo aquilo que falam, mesmo.

Eis que bate à porta o leitor expert, que já encarou tudo que a Companhia das Letras lançou de Bolaño no país e agora quer saber o que ler no original do cara.

Vamos tirar uma coisa do caminho: Roberto B. se considerava, antes de qualquer outra coisa, um poeta. Eu (e esta é uma opinião pra lá de pessoal) não gosto da poesia dele. Acho muito narrativa. Frescura minha? Quiçá. Seja como for, não sou o mais adequado para recomendar poesia bolañesca. E é por isso, talvez, que eu também não goste de Amberes, um confuso romance em prosa poética do autor.

Além dos já citados livros de contos, Bolaño tem algumas pérolas inéditas. Literatura nazi en América, por exemplo, é um catálogo de escritores de alguma forma relacionados ao pensamento nazifascista. A construção do livro lembra, em muitos sentidos, a de Bartleby & Cia., de Enrique Vila-Matas.

Recentemente, os editores estão fuçando em todo o acervo ignorado e esquecido de Bolaño. O resultado é a publicação de vários livros irregulares, como El secreto del mal, que tem contos interessantes (como o que ele narra um filme de zumbis que assistiu de madrugada) e outros que parecem inacabados e incoerentes. El Tercer Reich é um romance mais interessante, uma peça meio rara na obra do autor (tem um personagem alemão jogando jogos de guerra em uma praia espanhola). Todavia, deixa a sensação de que faltou edição ali. O tipo de livro que (especulo), se Bolaño estivesse vivo, sairia muito diferente.

Roberto Bolaño, portanto, se revela um prato cheio para quem quer mergulhar em uma bibliografia extensa e variada. Há algo de viciante, também. A cada livro lido, parece que compreendemos melhor o que lemos antes. São obras que se somam. Lembram que lá atrás, no texto, eu disse que Estrela distante era um conto expandido? Pois, Amuleto é um capítulo d’Os detetives selvagens estendido. O autor mesmo fala destes “diálogos com o fantasma cada vez mais vivo de Pierre Menard”. Mesmo quando seus livros se “repetem”, eles adicionam, se não novas informações, novas facetas, novos ângulos. Há todo um “universo Bolaño”, com personagens recorrentes (Lalo Cura aparece em 2666 e Putas assassinas) e ligações inesperadas (a única explicação sobre o título 2666 está na novela Amuleto) em perpétua construção.

Portanto, quanto mais se lê Bolaño, mais se lê Bolaño. Cada nova leitura nos ajuda a montar o quebra-cabeça Bolaño, ainda que no final, sempre tenhamos a impressão de que faltam muitas peças.