DIÁRIO DA RUÍNA

Você já fumou crack? Eu nunca fumei crack. Pessoalmente, nunca curti esse lance de drogas, nem sinto vontade de experimentar nada mais forte que um uísque ou mais viciante que café. Mas talvez você, leitor, aprecie drogas ilícitas. Talvez você tenha experimentado maconha, cocaína, cogumelos, ácido, quem sabe? Mas crack? Ih. Crack você provavelmente nunca fumou.

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Na cidade onde moro, um jornal local organizou uma gigantesca campanha chamada “Crack Nem Pensar”, que se espalhou pela cidade em forma de outdoors, propagandas televisivas e adesivos para carro. Sempre que algum conhecido de outro canto do país vem me visitar fica chocado com a onipresença da campanha. “É tão séria assim a epidemia de crack aqui?”. E, de tanto ver pessoas desnorteadas caminhando pela rua e fumando crack a céu aberto, concordo.

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Aí que tá: o crack, além de ser uma droga completamente aniquiladora, geralmente é associado, em nosso imaginário, a um nível radical de miséria. Ainda que o usuário não seja necessariamente pobre quando começou a fumar, logo (imaginamos), ele terá abandonado a família e se juntado a alguns mendigos queimando a pedra debaixo de algum viaduto. Terá também perdido, de acordo com nossa imaginação, qualquer faculdade de raciocínio lógico.

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Um dos grandes motivos para ler Retrato de um viciado quando jovem, de Bill Clegg, é que este nos apresenta a visão de um agente literário que se aventura (embora “aventurar” não seja um verbo nada adequado) pelo crack. Clegg não apenas passou pelo inferno e voltou para contar a história: ele tem um amplo conhecimento literário, ou seja, ele sabe descrever como poucos as profundezas deste inferno.

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Dois autores me vieram em mente durante a leitura das memórias de Clegg. O primeiro é Bret Easton Ellis, escritor norte-americano que retratou a “nova geração perdida” em livros icônicos como Abaixo de zero e Psicopata americano. Bill Clegg parece um personagem de Ellis, com a diferença de ser the real deal. Assim como o fictício Patrick Bateman, Clegg vive uma vida dupla. De um lado, traja a máscara de um cara com uma vida exemplar, um futuro promissor e um namorado (Clegg é homossexual) bacana. Do outro, um viciado com graves tendências autodestrutivas. Justamente esse conflito de personalidades que nos permite refletir sobre as condições e as motivações do autor: seu senso de deslocamento em relação aos bons cidadãos, aos seres humanos ditos “normais”.

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O segundo autor que lembrei lendo Retrato de um viciado quando jovem é o sul-africano J.M. Coetzee. As memórias de Clegg intercalam um presente narrado em primeira pessoa e lembranças de sua infância e adolescência narrados em uma terceira pessoa distanciada. Assim como Coetzee em Juventude, Clegg transforma seu “eu” jovem em um personagem separado do narrador. Qual o motivo? Para se garantir uma “liberdade narrativa maior”, como sugere o texto da orelha? Ou para que o próprio autor, ao promover esse afastamento e se transformar em personagem, i.e., em ficção, consiga compreender melhor sua trajetória?

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E, já que o assunto é vício, cabe mencionar que um dos triunfos de Clegg foi o de compor uma narrativa verdadeiramente viciante. Revela-se impossível não devorar esse livro em poucos dias. Estamos diante do tipo de obra que você liga para a namorada para cancelar um jantar e continua lendo, até terminar as páginas.

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Uma descida ao inferno escrita com urgência e desespero, com a mais violenta sinceridade – Clegg não perdoa os amigos nem ele mesmo. O diário de uma ruína, narrado por um prosador ímpar. Detesto aquelas críticas que parecem um guia do consumidor, mas preciso terminar este texto dizendo isso: leia Retrato de um viciado quando jovem.

CLEGG, Bill. Retrato de um viciado quando jovem. Companhia das Letras, 2011. Tradução: Julia Romeu. Preço sugerido: R$41,00

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras

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