Um escritor, já velho, é convidado por uma editora alemã a escrever ensaios a respeito de assuntos à sua escolha, à guisa de opiniões para serem publicados em uma coletânea chamada ‘Opiniões Fortes’. Esse escritor contrata uma moça jovem e bonita para auxiliá-lo, datilografando os textos. Ele acaba se interessando pela moça, que ao mesmo tempo que o rejeita- ela é noiva de um jovem empreendedor- cede em pequenos pontos, de maneira sutil e quase imperceptível. Nisso ela é impulsionada por seu afã de dar alguma alegria à um velho que não pode fazer nada além de desejar, e por seu namorado- que tenciona tirar alguma vantagem do relacionamento.

Uma história interessante, mas que poderia ser um tanto quanto banal, não fosse seu autor o sul-africano radicado na Austrália J. M. Coetzee.  Não é apenas a prosa afiada e as ‘opiniões fortes’ do próprio autor que tornam o livro especial. O modo como ele compôs a obra é um tanto quanto peculiar: em cada página existem três partes, uma para os ensaios- que versam sobre temas como George W. Bush, terrorismo e literatura-, uma para a versão do escritor –que nos é apresentado apenas como Señor C.- do que se desenrola entre ele e a datilógrafa, Anya, e ainda a versão dela dos fatos.

Abusando de ousadia formal Coetzee desenhou um panorama político do que nos restou os primeiros anos do século XXI (o livro é de 2007). São opiniões fortes, ácidas, mas bastante lúcidas.

Além disso, porém, ele retorna ao tema abordado em dois de seus livros anteriores, Desonra e Elizabeth Costello: a culpa. Señor C. sente-se culpado, Anya sente-se culpada. E é esse sentimento que faz com que surja a peculiar amizade que acabam por desenvolver, e também que se deixem alterar- ainda que sutilmente- um pelo outro.

O único a não se sentir culpado, porém, é Allan, o namorado de Anya. Eis aí outro dos conflitos do livro, o antagonismo entre Allan e Señor C. Não se trata apenas e nem exatamente da rusga entre a juventude e a velhice. Allan não é apenas um jovem- ele é um investidor que não tem escrúpulos para obter alguma vantagem. Ele é o modo de vida e de pensar que Señor C. ataca em seus ensaios, é o homem pós-moderno, pós-humanista. O velho é sua antítese combalida e, agora, quase incapaz.

A colisão entre esses dois mundos, mediada pela ingênua- politicamente, não sexualmente- Anya, é violenta e tem resultados imprevisíveis- a ponto de gerarem uma segunda coletânea de ensaios de Señor C.

Um dos melhores e mais ousados livros de Coetzee, Nobel de literatura e um dos únicos escritores a vencer duas vezes o prêmio Booker (salvo engano, só foram ele e Salman Rushidie), é difícil localizar Diário de um ano ruim entre o romance e o ensaio. Nas duas categorias, porém, é um livro interessantíssimo.

Diário de um ano ruim

Tradução de José Rubens Siqueira

248 páginas

Preço Sugerido: R$ 46,00

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