Ian McEwan acaba de passar por mim. O grande autor inglês caminha cuidadosamente pelo pavimento irregular do centro histórico, acompanhado por uma jovem desconhecida. Penso em dizer alguma coisa, mas tudo que posso pensar em dizer me parecem besteiras: fazer sobre seus livros os mesmos comentários que ele é obrigado a ouvir à exaustão, entregar-lhe em mãos o exemplar recém-adquirido de seu novo livro e pedir-lhe um autógrafo, dizer que sou seu grande fã (como se ele fosse um escritor iniciante ou um escritor obscuro que se sentiria realmente emocionado diante do acontecimento improvável de encontrar um admirador). Não digo nada. Ian McEwan se afasta, e eu sinto que deixei passar uma chance única. Logo, perceberei que me engano.

Isso foi na noite de quinta-feira. É a primeira vez que visito a Flip. Tudo ali é novidade e, como acontece quando estamos diante de novidades, recebo-as com simpatia e empolgação. Um sujeito vestido de palhaço recitando poesias a 1 real, os monges com seus livrinhos zen, a multidão que caminha tranquilamente, pronta para aplaudir cada atração. Assisto à abertura feita por Luis Fernando Verissimo e à primeira conferência, sobre Carlos Drummond de Andrade. O que dizem Silviano Santiago e Antonio Cícero não é muito diferente (talvez menos aprofundado) do que uma aula qualquer na já terminada faculdade de Letras, mas estou disposto a me deixar levar pela atmosfera de turista (um turista, como se sabe, é um ser disposto a ignorar imperfeições e amplificar as qualidades do local que visita).

No segundo dia, volto a encontrar Ian McEwan. Se não me engano, na mesma rua. Não me lembro se caminhava sozinho ou acompanhado de algum jornalista. Dessa vez, sorrio com naturalidade diante da situação, como se acabasse de topar com um velho conhecido. Novamente, não digo nada. Acompanho mesas, palestras paralelas, peço um autógrafo para Javier Cercas. No fim do dia, estou exausto. No sábado, a mesma coisa. Primeiro, penso que estou tão cansado por causa da ansiedade para aproveitar todos os momentos que conseguir, pelo fato de chegar de manhã no centro histórico e voltar para a pousada só à noite. Contudo, no sábado, enquanto procuro meu carro nas ruas caóticas de Paraty, percebo que o que me cansa, na verdade, não é exatamente o tempo exagerado que dedico a assistir palestras, comprar livros, procurar um local que não seja superfaturado para almoçar ou encontrar Ian McEwan caminhando tranquilamente pelo centro histórico da cidade. O que me cansa é o caráter vertiginoso disso tudo: os artistas de rua que tentam desesperadamente vender suas obras ignoradas como se fossem vendedores de redes varejistas, os esbarrões na multidão, os bares lotados e, principalmente, os entusiastas (obviamente, não-leitores) que correm comprar um livro do escritor do momento na tenda dos autores só para conseguir o autógrafo (e depois, provavelmente, abandonar o livro como enfeite de estante) e a insistente mania de todos tirarem fotos de tudo.

Há uma cena no livro Ruído Branco, de Don DeLillo, em que os personagens Gladney e Siskind se deparam com placas que o levam até “o celeiro mais fotografado da América”. Ali está uma multidão, e Siskind se refere à aura em torno daquilo: pode ser que o celeiro não tenha nada de diferente em relação a outros celeiros, mas eles fazem parte da aura, eles seguiram as placas e cada foto reforça uma aura de autêntico da qual não se pode fugir. Há uma aura, também, em torno de um evento como a Flip. Escritores perambulando no meio dos anônimos, membros da imprensa, blogueiros, alguns dos jovens escritores Granta (sentenciados na imprensa como “o futuro da literatura brasileira”), os artistas ignorados e, é claro, os anônimos, com seu sorriso permanentemente satisfeito, muitos comentários dispensáveis soltos no ar; os anônimos conferem a aura ao evento, estão ali para se sentir parte de uma elite intelectual num país iletrado. “Eu venho aqui só pela balada; gosto porque dá pra encontrar gente diferente, bonita, culta”, afirma alguém num suplemento d’ O Globo que pesquei por aí. Teju Cole diz na Casa Folha que anda pelas ruas do centro histórico e só se depara com brancos (na palestra só há brancos) e pergunta-se: onde estão os negros? Poucos dias e, com sua astúcia de escritor, percebe as contradições entre o Brasil e aparência e o Brasil em sua essência, entre a aura brasileira vendida por aí e a realidade (essa palavra horrorosa e pouco exata). Mas nossa elite evita pensar nessas contradições agora. Querem fazer parte da aura e está tudo bem, porque as editoras querem vender livros, os comerciantes querem aproveitar a temporada. Mas e os escritores? Talvez Enrique Vila-Matas tenha definido bem em sua apresentação (que substituiu a do vencedor do Nobel Le Clézio – presença que, por sinal, só aumentaria a aura): “os escritores devem ser lidos e não vistos”. A ironia é que eu estava ali para vê-lo.

Já McEwan, topei com ele uma terceira vez na Casa da Cultura. Pensei em me apresentar e pedir uma foto. Minha esposa me dissuadiu. Fez a coisa certa.

Sobre o autor: Rafhael Borgato, 26, é mestre em Teoria Literária pela Unesp, publicador ocasional de artigos em periódicos e leitor do que lhe possa cair na mão. Sustenta o vício por livros com aulas de literatura e língua portuguesa.