Após colaborar com uma lista de 5 clássicos na sua opinião, Bán Jacobsen traz aos leitores do Meia Palavra 5 livros de Guilty Pleasure – ou prazeres culposos, ou se preferir, de gostos bem duvidosos.

1- Onze Minutos (Paulo Coelho)
Por que ler Paulo Coelho? Por que ler “Onze Minutos”? O mago, um dos mais controversos imortais que já cruzaram os umbrais da Academia Brasileira de Letras, é acusado, pela crítica, de diversos crimes e sacrilégios literários: estropiar a língua portuguesa pelo desleixo e pela ignorância que deixa transparecer com respeito ao vernáculo e ao vocabulário (o que o faz escrever coisas como “domingo onde”, “saindo até o lado de fora”, “necrose no ventríloquo esquerdo”, “vidro tosco”, etc.); fazer orbitar suas tramas em torno de uma visão sempre otimista e ingênua do mundo, o que esvazia seus livros de qualquer densidade psicológica; fabricar ensinamentos espirituais sem compromisso algum com a consistência deles à luz das tradições que o próprio texto invoca, carnavalizando essas tradições (muitas vezes incongruentes entre si) em um indigesto omelete ecumênico; apelar para uma infinita repetição de temas, ideias, situações e personagens, indicando sua limitação de repertório; inserir, de modo inábil e canhestro, paráfrases de textos de divulgação (como verbetes de enciclopédias) para dar ao leitor informações sobre certos assuntos (desde as origens do Caminho de Santiago, até as mais comuns formas de obtenção do curare, passando pela evolução da prática do sadomasoquismo ao longo da história). Em “Onze Minutos”, romance que narra os percalços de uma prostituta brasileira que vai morar na Suíça, encontramos, de fato, todos esses elementos. Aqui, porém, como nunca antes na obra do mago, a questão mística está entrelaçada ao erotismo – o sexo e a religiosidade podem ser duas faces de uma mesma moeda, assim como agonia e prazer, e isso é patente em uma cena em que a prostituta Maria, protagonista da obra, dominada por um cliente, descobre o quanto o êxtase mais pleno e a transcendência podem estar ocultos sob o rude manto da dor. Por que ler “Onze Minutos”? Em suma: porque ver o mago descrevendo cenas de chicotinho e cinta-liga não tem preço!

2- Morte no Nilo (Agatha Christie)
Poderia estar aqui, na lista, qualquer livro da dama do crime, com as suas indefectíveis fórmulas prontas: uma mansão britânica ou uma exótica paisagem do oriente próximo, um crime, um cadáver, um rol de suspeitos, uma sequência protocolar de interrogatórios nos quais as pistas são apresentadas ao leitor, culminando na clássica cena da reunião com todos os envolvidos para que o detetive possa, enfim, revelar a identidade do assassino. Tudo isso narrado em uma linguagem simples, talvez até pobre. Sempre assim, sempre a mesma dicção e o mesmo roteiro – e, não obstante, o prazer de descobrir que a boa e velha Agatha, mais uma vez, como sempre, conseguiu te enganar, diante dos teus olhos, feito aquele prestidigitador que faz sempre o mesmo truque, naquela mesma esquina, sem que ninguém consiga ganhar uma aposta com ele.

3- Harry Potter (J. K. Rowling)
Não deveria ser um guilty pleasure apreciar a saga do jovem bruxo órfão que busca resgatar o próprio passado que lhe fora escondido e vingar a morte dos pais, envolvendo-se em um eletrizante jogo de gato e rato com o assassino deles, uma espécie de candidato a ditador, um “Hitler do mundo dos feiticeiros”. O romance em sete partes criado pela escocesa J. K. Rowling é um best-seller (um dos maiores de todos os tempos), mas possui qualidades raramente encontradas nos livros que frequentam as atuais listas de mais vendidos: o ambiente predominante na saga, a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, não é apenas um cenário bem descrito, mas sim um microcosmo da sociedade dos bruxos (com suas castas, rixas políticas, divergências filosóficas), a qual, por sua vez, é um competente espelho da nossa própria sociedade; os pormenores que, em certa altura, podem parecer apenas excessos narrativos, pontas soltas, acabam sendo cruciais e se encaixando com elegância na construção do desfecho; as personagens, mesmo as secundárias, sempre oscilantes, passam longe da planicidade, pois apresentam fraquezas por trás das virtudes, boas intenções por trás de atos aparentemente maldosos, perfídias ocultas sob afabilidades, angústias sob a couraça da bravura; a narrativa é escorreita, qualidade admirável quando se está lidando com uma urdidura romanesca que entretece inúmeras tramas e subtramas, refundidas a partir de diversas mitologias (celta, hindu, helênica, latina, maia) e alinhavadas em torno de um eixo que, em sua essência, é uma competente releitura da clássica jornada do herói grego arquetípico. A despeito de todas essas qualidades, a crítica acadêmica, em sua maior parte, torce o nariz; Harold Bloom torce o nariz; meus amigos cults, eruditos e refinados me olham torto e torcem o nariz. Sinto-me culpado. Logo, só resta admitir: para mim, ler Harry Potter é um imenso guilty pleasure!

4- A Carne (Júlio Ribeiro)
No colégio, ao ensinarem sobre o naturalismo, os professores elencam as suas características (o determinismo da hereditariedade e do meio, o retrato de sentimentos bestiais, a descrição crua de violência e sexo, o apelo ao cientificismo) e sempre fazem questão de frisar as limitações estilísticas e o parco resultado estético obtido pela maioria dos escritores que nessa “escola” se enquadram. Depois disso, mandam os alunos lerem “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, talvez por ser um exemplar de maior literariedade; porém, deveriam mandar ler “A Carne”, mil vezes mais didático: naturalismo escrachado, puro e concentrado. De fato, nessa obra (que, à época, foi chamada por certo padre de “carne pútrida, exibida a 3$000 a posta nos açougues literários de São Paulo”), o enredo pode ser frouxo, as personagens podem ser exageradas, as figuras de linguagem podem ser grotescas, podem abundar inoportunos infodumps sobre botânica, toxicologia, arte clássica e geografia do estado de São Paulo; entretanto, mesmo assim, é imperioso o prazer trash e voyeurístico de acompanhar o forte despertar erótico da protagonista Lenita, junto com seus repentes sádicos, em uma progressiva crise de histeria que a leva ao gozo quando maltrata animais, quando caça, quando observa os sangrentos castigos físicos infligidos aos escravos e, é claro, quando enfim se entrega ao sexo furioso e libertino. E, na arquitetura desse crescendo doentio, as bizarrices e os defeitos da prosa apenas a tornam ainda mais suculenta.

5- Tieta (Jorge Amado)
O livro talvez explique a si mesmo através do seu título completo: “Tieta do Agreste, pastora de cabras, ou A volta da filha pródiga, melodramático folhetim em cinco sensacionais episódios e comovente epílogo: emoção e suspense!”. A trama apoia-se sobre uma situação clássica, a da mulher que volta rica e poderosa à cidade de onde fora expulsa: a então adolescente Antonieta, após entregar-se à luxúria com vários homens e ser delatada ao pai pela própria irmã carola, é forçada a deixar sua casa e prostituir-se nas redondezas até se tornar cafetina em São Paulo, cidade onde se amasia com um eminente industrial que, ao morrer, acaba lhe deixando com uma conta bancária substancialmente recheada; retorna, então, à terra natal, 26 anos após sua partida, quando já era julgada morta, para promover uma verdadeira revolução ao seu redor. E (como não poderia faltar) na narrativa das peripécias desta “cabra solta que ninguém domina”, estão os diálogos apimentados que registram a fala da região, descrições de hábitos (inclusive religiosos) e histórias tradicionais, tudo bem temperado com as tonalidades fortes de uma Bahia intencionalmente pitoresca. Por tudo isso (e muito mais), Oswald de Andrade, certa feita, chamou a obra de Jorge Amado de “macumba para turista”. Pode até ser, mas quer coisa melhor do que se engordurar todo com um acarajé bem picante?

Rafael Bán Jacobsen – Físico da UFRGS e escritor eautor dos livros Tempos & costumes (Prêmio Açorianos de Destaque em Narrativa Longa / 1998), Solenar (vencedor do Prêmio Açorianos / 2006) e Uma leve simetria (finalista do Prêmio Açorianos / 2009 e do Prêmio Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores / 2010). Seu novo romance, Imemorial das pedras, ainda inédito, foi contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária em 2010.