Continuando com meus posts sobre a ingenuidade – que começaram mês passado com a defesa de Rousseau – proponho pensarmos um pouco sobre os escritos de Montaigne, não necessariamente o cerne de suas várias facetas, mas uma frase em especial que, aliás, é uma das que mais se destaca, mesmo perante todas as ramificações de suas investigações filosóficas: “A virtude como volúpia”.
Essa frase me chamou a atenção pela forma contrastante com que “se comporta” diante das formas de nossa realidade circundante. Intercambiar sentidos entre as palavras – e os consequentes conceitos – de “virtude” e “volúpia” não foi uma atitude controversa somente no tempo de Montaigne, mas também – e talvez principalmente – nos tempos de hoje. Como disse Auerbach a esse respeito:
“A virtude como volúpia: isso não consta nem do estoicismo, nem do epicurismo, nem do ceticismo. Trata-se de algo mais vivo do que as formas da ética individual da Antiguidade tardia e em geral do que qualquer atitude fundada apenas no pensamento.” (p. 28)
Nos chama a atenção a forma como Montaigne se endereça à virtude, tratando-a como volúpia e vice-versa. Não porque as virtudes tenham sido valores esquecidos no tempo de Montaigne, mas defendê-las enquanto não só possíveis “nortes” de moral, mas também como realização espiritual e, inclusive, fruição prazerosa é algo que tem de ser posto em relevo. O que torna essa afirmação de Montaigne singular não é a defesa moral da virtude enquanto exemplo e possível modelo, mas como realização existencial enquanto ideal de vida, afinal Montaigne foi famoso por várias afinidades com a boa vida e uma orientação existencial dada à banquetes para os sentidos e para o espírito.
Defender a virtude para além de seu valor moral torna Montaigne ingênuo? Certamente não. Ao formular uma tal pergunta, talvez se esteja a olhar o problema da perspectiva errada: o que faz, porventura, tal afirmação soar mais ou menos ingênua? Não é uma exploração da natureza da ingenuidade em si, mas dos critérios e circunstâncias em que cada suposta “ingenuidade” vem à tona. Que tipo de “estatuto” moral existente hoje reelabora de tal forma a frase de Montaigne?
A História pode nos ajudar nesse sentido. Basta começar, por exemplo, perguntando o que mudou de lá para cá. Os valores que imperavam – ou que vicejavam sob quaisquer aspectos – no tempo de Montaigne são bastante diferentes daqueles que vicejam hoje. Muitos deles feneceram – ou perderam alguns de seus sustentáculos essenciais – na medida em que certos valores morais se tornaram cambiáveis economicamente.
Não se trata de uma mudança assim tão simples e mecânica, as metamorfoses da existência social se deram de tal forma e em tão amplo alcance e intensidade desde o século XV até os dias de hoje, que supor que a conversão econômica da moral é sua única causa – ou consequência – é ser no mínimo limitador. Entretanto, esse parece ser um foco bastante profícuo de ponderação. Possuir a virtude – fosse ela qual fosse – como um ideal de realização prazerosa soa um tanto quanto deslocado em nossos dias, quando a moral é tão abalroada pelas relações sociais mediadas por valores monetários.
Pensar tal frase perante as relações sociais do século de Montaigne, ainda mais para sua classe social, não é necessariamente o melhor exemplo “virtuosístico” (os comentários sobre os “incultos” e as mulheres são, não raro, ferinos), mas a cunha que separava a sua classe das baixas, por exemplo, e aquela que hoje o faz é muitíssimo diferente. Isso redimensiona a questão e traz a discussão a um outro patamar. Não é a presença do dinheiro que muda as coisas, mas a trajetória histórica que o ensejou. É o conjunto das relações sociais que lhe dá valor que mudou, e que mudou ao longo dos tempos, não nasceu pronto e não está definido.
É impossível e ingênuo presumir que a concepção de virtude seja universal e que a virtude da qual fala Montaigne seja a mesma a que nós nos referimos hoje em dia, mas, por outro lado, não podemos assumir que ambas estejam tão distantes epistemologicamente que sejam estranhas uma da outra. Sua distância temporal e gnosiológica, portanto, serve muito bem ao propósito de mostrar como temos caminhado por tão tortuosos caminhos e que a experiência histórica pela qual passamos é vasta, desconcertante e, nesse sentido, profundamente aterradora. Não se trata nem de ingenuidade nem de fatalismo, mas de uma abordagem em vias de ser feita, que jaz permanentemente em aberto em cada dilema – hamletiano ou não – que assalta a cada um de nós todos os dias.
MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Organização de M.A. Screech. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Simplesmente fantástico este texto, aliás como todos que escreve.
Abraços
Obrigado Gustavo, fico muito feliz que tenha gostado. 🙂
Aguarde que mês que vem tem a terceira parte sobre a ingenuidade.
Olá, Lucas!
Primeiramente, preciso dizer que estou adorando o trequinho sobre a ingenuidade. Não comentei no outro porque sou desligada, aí, como fico com mil janelas abertas ao mesmo tempo, li o trequinho e esqueci de comentar. Mas acho que eu pretendia dizer algo como “você conseguiu mostrar, no seu post, muito bem a questão de que a aparente ingenuidade do Rousseau é um reflexo da sua historicidade, não de uma postura alienada”.
Sobre este post, que tem como foco “a virtude como volúpia”, gostei da sua leitura e reafirmo a importância da contextualização. O meu ímpeto sempre foi o de que interpretar essa famosa frase como um paradoxo gritante. Entretanto, quando recorro à sensatez, acabo fazendo aquelas perguntinhas essenciais para que se compreenda qualquer discurso: com qual conceito de virtude estou lidando? Qual é a minha interpretação para a volúpia? E, posteriormente, tento confrontá-las com os conceitos de virtude e volúpia vigentes à época de Montaigne.
Enfim, parabéns por mais um belo texto.
Poxa, muito obrigado, tu não faz ideia de como é recompensador ler comentários como o teu e o do Gustavo, logo ali em cima. 🙂
Quanto ao repensar conceitos e quaisquer produtos da ação humana contextualizando-os historicamente, bem, sou suspeito em dizer, mas é, para mim, o que há de mais interessante em uma obra, seja ela literária ou não. É um processo que caminha numa corda bamba entre dois extremismos: a interpretação que se quer definitiva ou a relativização extrema. Nenhum dos dois, por si só, está certo. Aliás, qualquer um dos dois é contraproducente quando da interpretação de algo histórica e historiograficamente.
Esses dias participei de um workshop com o Sidney Chalhoub, um de meus historiadores brasileiros favoritos, e teve uma frase dele que me chamou muito a atenção. Não vou saber citar, mas a ideia central era de que, ao interpretar a literatura (no caso) as pessoas costumam aludir ao contexto histórico, como se ele fosse o contexto, o de fora, e não o próprio sujeito e sua obra. Isso não determina a obra, mas a condiciona de formas tão profundas quanto múltplas e complexas. A história não está fora do sujeito, mas nele próprio, sendo reelaborada constantemente, ainda mais quando da escrita, um processo que exige tanta concatenação e trabalho intrincado.
Não é uma coisa linda isso?