Ao terminar a leitura de Barba ensopada de sangue me veio a cabeça os clássicos westerns de Sergio Leone. O diretor italiano montava quadros inesquecíveis, não apenas cenas ou sequências, quadros com detalhes ricos que vão de uma goteira a uma mosca. Basta o espectador pausar durante as cenas iniciais de Era Uma Vez no Oeste e entenderá exatamente. Alguns desses detalhes não fazem parte da narrativa principal, mas são explorados pelo cineasta sem necessitar de um movimento de câmera, um corte, um zoom. O mesmo acontece com o último livro de Daniel Galera: as descrições são precisas e sem grandes floreios, ao contrário do que acontece em algumas narrativas de fantasia, que só para ilustrar fielmente uma pedra, uma onda ou o movimento das marés exageram em parágrafos longos e redundantes. O talento narrativo do escritor é abusar de um ritmo cadenciado e do coloquialismo para visualizações rápidas e familiares de paisagens, sons e pessoas sem perder os… detalhes.

Um professor de natação com problema neurológico, que o impossibilita de memorizar o rosto das pessoas e o seu na frente do espelho, muda-se para Garopaba com Beta, a cachorra que pertencia ao seu pai antes de ele cometer suícidio. A cidade litorânea de Santa Catarina tem importância na história de sua família, foi nela que seu avô Gaudério morou nos últimos anos de sua vida, antes de ser morto e enterrado em algum lugar desconhecido – um caso sem inquérito policial e solução. O personagem (nunca nomeado) vê a oportunidade de conhecer a fundo a história do avô, descobrindo que os moradores não gostam de comentar as circunstâncias acerca da morte, ao mesmo tempo que se isola do mundo e de traumas recentes.

Pouco a pouco uma aura de mistério toma conta daquela cidade, inóspita e hostil com gaúchos e outros visitantes que procuram sossego, mas que não aguentam o sossego em demasia quando a temporada de verão passa. Diversas lendas são ouvidas pela metade e outras sãos fontes de superstição que trazem traumas até às pessoas mais sãs. O ar de western (a busca por uma verdade, uma vingança ou recompensa e duelos) colabora para realidade e lendas urbanas se juntarem em um espectro só; o choque de cotidiano com fantástico não existe, estão intrincados, misturados e costurados um no outro. A loucura coletiva é explorada em diversos segmentos sem perder a medida – como o fato curioso do nadador ser igual ao avô Gaudério à medida que deixa a barba crescer -, sem mostrar-se totalmente falsa e exagerada, e sim assustadoramente verdadeira. Galera explora minuciosamente, sem acelerar acontecimentos, deixando o espectador à mercê de dúvidas, mesmo aquelas explicadas em seguida. Essas sutilezas narrativas têm o potencial ampliado em uma das cenas chaves da história.

Toda a investigação do nadador é apenas para manter sua mente focada em algo. Quando está ocupado com aulas e criando amizades, pouco se ouve sobre a lenda de Gaudério. A mudança para essa cidade é muito mais que uma curiosidade mórbida sobre o avô e sua morte, é uma viagem de conhecimento próprio, para apaziguar pensamentos infortunos sobre a morte do pai, sobre o fim de seu relacionamento e sobre seu irmão Dante. As histórias paralelas, ou seria melhor classificá-las como a “história do protagonista antes de Garopaba e que vem assombrá-lo de tempos em tempos”, são construídas sutilmente por fragmentos, conversas “incompletas” e reencontros.

A vida não é para amador

O grande atrativo do livro é a deficiência do professor, que enriquece os personagens. Apegar-se aos detalhes das pessoas como a cor dos cabelos, e como eles são presos, o movimento das mãos, o perfume, tatuagens, entre outros, criam intimidade com cada personagem, coisas que apenas com muito tempo de convivência é possível fazer. O professor consegue distinguir um sedentário de um esportista ocasional, e até gemêos entre si. Quando ele engata um romance com uma jovem local, logo percebe quando ela está ou não sob efeito de bebida e drogas e consegue reconhecê-la facilmente após algum tempo de convivência. Por outro lado, como forasteiro em uma cidade pequena, a condição o deixa à mercê de tornar-se um ser malquisto por não cumprimentar as pessoas ou reconhecê-las em festas ou na rua.

Um adendo interessante sobre os “detalhes” é como eles transformam a visão do nadador sobre o mundo. Acostumado às minúcias, ele percebe padrões de comportamento e consegue antever ações das pessoas que conhece, mesmo não querendo acreditar.

Todos os laços criados durante sua estadia têm algo de especial e monta uma galeria de personagens ímpares: a amizade com um budista dono de pousada, uma agente de turismo, os alunos da academia em que dá aula; todos eles, com grande ou pequena importância, podem ser deixados de lado sem uma conclusão aparente de suas histórias com o protagonista. Os personagens são construídos com detalhes, talvez inúteis – mas nunca descartáveis-, justamente para criar uma aura, isto é, pessoas queridas ao professor não são 100% boas ou ruins, não são enquadradas apenas como feias e bonitas ou como feições, são tridimensionais, altos e baixos, mortais, ordinários, comuns. Em Cordilheira, por exemplo, a personagem central era artificial e quase inverossímil, o que tirou bastante da trama.

Barba ensopada de sangue tem fôlego, muito fôlego. A narrativa cativante junta personagens marcantes a uma história cheia de desvios necessários e intrigantes. Como Sergio Leone não está mais entre nós, cabe a Karim Aïnouz (O céu de Suely) – muito bem capacitado a criar os quadros que citei e ao mesmo tempo manter a história fluente –  adaptar esta grande obra de Galera, que tem sim um potencial absurdo para uma narrativa cinematográfica baseado em suas passagens memoráveis, tocantes e violentas – tanto física quanto emocionalmente.