(Põe Tori Amos para tocar – “Pretty Good Year” – e começa a escrever.)

Julho já passou e a gente não se esqueceu: 2014 é O ano para ler mulheres. À hashtag #readwomen2014 uniu-se outra, mais recente (#kdmulheres), cujo fim é questionar (com dados concretos1) a quase ausência de mulheres nas mesas oficiais da Flip2, nas homenagens da mesmíssima festa, na Academia Brasileira de Letras, por exemplo. Todos comemoraram a notícia de que “mulheres leem mais e dominam prêmios”, o que talvez tenha ajudado a esconder o fato de apenas dois dos vinte indicados a melhor romance pelo prêmio Portugal Telecom de Literatura serem de escritoras3. Pode parecer tempestade em copo d’água, algo até meio passé, mas isso é só antes da gente descobrir que um “crítico” achou legal ser misógino ao “pensar” a poesia de Angélica Freitas.

Sei que muitos inicialmente acharam exagerada a ideia de passar o ano lendo apenas autoras4. É de se aplaudir, portanto, os esforços de quem não deixou o projeto cair no esquecimento.

Você olha para um lado e lá está uma lista que o Rafael do blog Casmurros fez de dez escritoras que você vai querer ler. Olha para o outro e vê uma lista com os 20 livros escritos por mulheres que mais mudaram a vida de seus leitores. De vez em quando dá um pulo no tumblr leiamulheres2014 e se permite ser fisgado por um ou outro texto de apresentação. Checa o Twitter e uma amiga revela que seu top 5 do ano (até o momento) não tem macho algum. E, para completar, cai um link bem na sua frente, como quem não quer nada; logo um que indica 50 romances excelentes de escritoras com menos de 50 anos.

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O que 2014 tem de especial

(Para essa parte, “Flawless” talvez seja mais interessante.)

Mas não é apenas isso. Ainda que metade de uma das listas supracitadas não tenha me interessado, seu título não poderia ser mais apropriado ao que se sente neste ano: “escritoras que você vai querer ler”. Porque, sim, são muitos os lançamentos nos instigando a abandonar tudo para lê-los.

As razões para o auê atrás do livro novo de uma escritora são diversas: um prêmio importante que foi recebido; a participação dela em seu torneio favorito; sua inegável presença nas listas de mais vendidos; um instigante discurso compartilhado nas redes sociais; a citação de um desses discursos em uma canção pop; a recomendação de um colunista (que, às vezes, é o próprio tradutor, empolgado com sua sorte); a constância de seu nome na lista de “lidos” dos amigos no Goodreads; a vinda da autora para a Flip; ou o bom e simples “eu já a conheço e sei que ela é boa pra caramba”. E nenhum de tais motivos precisa ser exclusivo – aliás, costumam se sobrepor.

E olha o que nos aparece em 20145: Suíte em quatro movimentos, de Ali Smith; Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie; O pintassilgo, de Donna Tartt; NW, de Zadie Smith; Vida querida, de Alice Munro; Os lança-chamas, de Rachel Kushner; Um, dois e já, de Inés Bortagaray; Mary Poppins, de P.L. Travers; A casa redonda, de Louise Erdrich; A assinatura de todas as coisas, de Elizabeth Gilbert; Os luminares, de Eleanor Catton; As doze tribos de Hattie, de Ayana Mathis; O segredo do meu marido, de Liane Moriarty; Olhe para mim, de Jennifer Egan6; e A terra inteira e o céu infinito, de Ruth Ozeki.

E não são apenas traduções disputando nossa atenção: tem os novos de Elvira Vigna (Por escrito), Carola Saavedra (O inventário das coisas ausentes), Simone Campos (A vez de morrer7), Maria Valéria Rezende (Quarenta dias), Vanessa Barbara (O louco de palestra – e outras crônicas urbanas), Luisa Geisler (Luzes de emergência se acenderão automaticamente) e Socorro Acioli (A cabeça do santo). Lá fora, para aqueles mais afoitos que leem no original, temos: Can’t and Won’t, de Lydia Davis – responsável pelo excelente Tipos de perturbação; Frog Music, de Emma Donoghue – autora do perturbador Quarto; Landline, de Rainbow Rowell – escritora de um dos melhores YAs dos últimos tempos, Eleanor & Park; e The Silkworm, segundo romance policial de Robert Galbraith (pseudônimo de J.K. Rowling, que dispensa apresentações).

Difícil de escolher, hein?

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Para além da curiosidade

(“That’s not my name” têm tudo a ver com o tema desta seção.)

Contudo, os lançamentos empilhados estrategicamente nas livrarias físicas (torres intrincadas e belíssimas que desafiam as leis da física) e os banners explosivos das lojas virtuais ocultam um imenso catálogo de livros – muitos deles das mesmíssimas autoras que disputam nossa atenção com tais artifícios. O destaque dado aos lançamentos é tamanho que não são poucas as livrarias – de shopping e de rua – cujos acervos simplesmente não incluem livros mais antigos, disponíveis apenas sob encomenda8.

Não tenho nada contra a leitura curiosa daquele livro de que todo mundo está falando, muito menos contra certo gancho na conversa com os amigos, aquele do “ei, eu (que só leio um livro por ano) decidi que em 2014 leria uma mulher e… não é que essa Ruth Ozeki é boa pra caramba mesmo?9”. Sou é contra o… bem, falarei disso mais adiante. Por ora, finjamos que meu problema é apenas um: TOC. Eu gosto de ler obras completas, em especial de quem tiver escrito um livro de que gostei muito. E esse gosto, por sua vez, costuma se refletir na tentativa de lê-las na ordem de publicação.

Percebi isso quando foi anunciado o lançamento do novo de Carola Saavedra: antes de lê-lo, fui de Paisagem com dromedário – leitura tão adiada e tão boa. Já tinha lido os dois anteriores, não custava ler mais um antes de O inventário das coisas ausentes. Foi então que algo semelhante ocorreu com NW, de Zadie Smith: estava prestes a comprar o livro quando me toquei de que o elogiadíssimo Dentes Brancos, da mesma autora, não tinha sido retirado da estante por anos – desde a compra. Decidi que leria este antes10. Mesma coisa com os romances de Donna Tartt: A história secreta e O pintassilgo chegaram juntos à minha casa e eu decidi dar preferência ao mais antigo.

Mesmo que não surja o interesse de ler a obra completa de uma escritora, a ordem cronológica me seduz – em especial, no que tange a chegar aos lançamentos tendo lido ao menos um ou dois anteriores. Parece-me uma questão de respeito, uma espécie de posicionamento político: ao fazer isso, estou dizendo que não considero que ela esteja escrevendo sempre o mesmo livro, que me proponho a saber de onde ela partiu antes de chegar ao novo título – e, em maior escala, estou chamando de insensato o conceito de “literatura feminina”, esse termo que englobaria toda a produção de autoras tão díspares entre si11.

Se para mim isso é óbvio, não parece ser um pensamento geral. Não quando há gente julgando pela capa ou pessoas – jornalistas que simplesmente reportam fatos12 – escrevendo que um livro “pode até ter leitor homem, mas foi feito para mulher”, entre outras baboseiras.

Mas como cheguei à conclusão de que isso seria óbvio? Simples: lendo mais escritoras. Foi assim, por meio da experiência pessoal e direta, que vi que elas podem escrever qualquer coisa – não importa o que o Naipaul diga.

E não estou fazendo nenhum favorzinho a ninguém: o maior beneficiado disso sou eu, leitor com transtorno obsessivo-compulsivo. Quando pego o novo de Luisa Geisler, consigo identificar, numa cena, a resposta para uma teoria da conspiração que criei durante a leitura de Quiçá. Ao conferir a coletânea de crônicas de Vanessa Barbara, conheço mais o Mandaqui e vejo nele os fundamentos (e alguns personagens) de Noites de alface. E se começo a ler Por escrito bem de boinha, logo sou estapeado na cara por conexões entre ele e outras obras lidas de Elvira Vigna: outro ponto de vista para o motel de Nada a dizer; a dança e a poeira em uma nesga de sol, presentes em O que deu para fazer em matéria de história de amor; um cantinho numa fazenda parecido com o que foi visto em Vitória Valentina.

O mesmo com Jennifer Egan e Ali Smith: passa o tempo e elas só melhoram.

Recomendo a experiência.

***

Queria terminar esta coluna com uma galeria. Propuseram o desafio #bookadaybrazil no Instagram durante este mês: postar um livro favorito por dia, de acordo com alguns temas pré-definidos. Decidi que só postaria livros escritos por mulheres, uma forma de provar a mim mesmo que não é complicado achar um livro favorito em cada categoria.

Logo abaixo estão os que postei até o momento – é só clicar que as fotos aumentam. Talvez eu atualize a galeria no final do mês, com os restantes. Como ninguém deve aguentar mais ler, não copiarei as legendas: quem quiser ler, confira no meu perfil dessa rede social.

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  1. Números! Todos nós adoramos porcentagens exatas, ainda que às vezes digamos que elas não significam nada.
  2. Chega dói descobrir que Elvira Vigna – uma das autoras sugeridas por Emanuela Siqueira em seu blog – nunca foi à festa porque… nunca foi convidada!
  3. Os números do prêmio São Paulo de Literatura são um pouco menos assustadores. Mas só um pouco: são apenas 4 mulheres entre os 20 finalistas. Bensimon, Barbara e Del Fuego continuam fora dessa outra disputa, mas há um livrinho muito do xexelento em AMBAS as listas. Vai entender…
  4. Eu me incluo entre estes. Contudo, não me passou pela cabeça ver exagero na ideia de passar o ano resenhando apenas autoras: 5 dos 7 textos que escrevi para o Jornal Rascunho em 2014 foram sobre livros de escritoras.
  5. Todo texto necessita de um recorte. Então, o que apresento aqui não vai além dos livros que me interessaram e me deram vontade de abandonar tudo só para lê-los
  6. Taize discordou de mim sobre qual é a melhor Charlotte.
  7. Os elogios ao romance, tanto pela Folha quanto pelo Homo Literatus, me levaram à decisão de dar uma chance à autora, mesmo depois do sofrível No shopping. Até porque, se fosse legal julgar e rotular um autor pela sua obra de estreia, eu não leria mais Antônio Xerxenesky – e teria me privado de A página assombrada por fantasmas, que adorei.
  8. No ramo virtual é mais difícil não encontrar um livro, mas não podemos fechar os olhos para a prática de muitas lojas online: há títulos que não vendem muito e que, na primeira oportunidade, são ofertados com descontos absurdos; tão logo o estoque deles é esvaziado, nunca mais é reposto.
  9. E, sim, ela é boa pra caramba mesmo. Retomei a leitura mais de um mês depois – mais um desses testes de abandono – e ela continua excelentona.
  10. Tô na metade, outro teste de abandono. Mas estou adorando.
  11. Basta lembrar da citação de Elvira Vigna que utilizei em uma coluna anterior.
  12. Ah, a neutralidade dos fatos!