Joris-Karl Huysmans não se tornou um escritor controverso, polêmico e celebrado à toa. Verdade seja dita, ele causou um baque estrondoso ao se chocar contra o solo, as questões e as certezas da literatura francesa do final do século XIX. Aliás, a metáfora utilizada para descrever qual foi o impacto literário de sua obra seminal não é gratuito, pois o próprio autor, num momento de inspirada lucidez conotativa, disse que seu livro caiu “como um meteoro na feira”.

Publicado em 1884, quando o autor já havia escrito uma série de romances dentro da estética e das preocupações da escola naturalista (à época sob a égide do grande Émile Zola), Às avessas foi recebido com tanto entusiasmo quanto receio. E as razões que ajudam a explicar as nervuras literárias do romances podem ser, boa parte delas, encontradas nas peculiares circunstâncias biográficas, estéticas e históricas do período em que Huysmans viveu e escreveu.

Se houve um sério e sistemático esforço de restauração política por parte das elites aristocráticas francesas após a derrubada de Napoleão Bonaparte, não se pode afirmar categoricamente que ela tenha sido nem uma reconquista definitiva, nem longeva. O antológico ano de 1848, como escreveu temeroso Tocqueville, foi testemunha de movimentos históricos que, semelhantemente aos abalos imputados na “década revolucionária” (1789-1799), consolidaram um questionamento profundo à Antiga Ordem e suas prerrogativas.

Porém, se na Revolução Francesa havia um forte cheiro de radicalidade impregnando a atmosfera histórica francesa (vide os camponeses e os artesãos marchando pelas ruas de Paris), as jornadas de 1848 ocorriam num momento e numa conjuntura bastante diferentes apesar da presença de elementos radicais. A civilização liberal reivindicava seu momento, e a burguesia francesa não demorou a arquitetar as bases de sua subida ao poder: o 18 Brumário de Luís Bonaparte se aproximava.

Huysmans, nascido em 1848, cresceu sob a conflituosa égide histórica de um período de transição. A sociedade francesa aburguesava-se a olhos vistos, e na economia, na política, na cultura e nos costumes passava a imperar a mentalidade dos nouveaux-riches, não raro marcada pelo lucro, pela frugalidade e por um pragmatismo filosófico tido diversas vezes como utilitarista ou filisteu. Porém, ao mesmo tempo, os eflúvios românticos de uma nobreza tida muitas vezes como garbosa e aventurosa galgavam os corações e as mentes daqueles que, não muito bem sintonizados com o modus vivendi burguês, o repudiavam por medíocre e materialista demais, desprovido da pretensa grandiosidade dos tempos nobres.

O personagem central de Às avessas (o único, aliás), Des Esseintes, epitomiza a inadequação potencial nesse período de transição, pois ele não encontra-se espiritual ou existencialmente pertencente a nenhuma classe, universo cultural ou mentalidade. Sua condição social o aproximaria, em termos materiais, tanto da burguesia francesa (em ascensão) quanto da nobreza (desafiada em 1848), mas o personagem, como o próprio escritor, não encontraria alento em nenhum dos dois “lugares”.

Contra esse pano de fundo é que se recorta o espírito ranzinza de Des Esseintes. Sua decisão de isolar-se do mundo, tomada no início da obra, emblematiza o que talvez possa ser chamado de “visão decadentista”, uma visão profundamente pessimista com relação aos rumos do mundo e desgostosa de ter de nele permanecer, em meio a sua mediocridade e sua mentalidade ao rês do chão. A modorra burocrática do dia-a-dia, a banalidade repetitiva e monótona da forma de pensar dominante são tidas por Des Esseintes como desdobramentos da civilização burguesa, nocivas aos espíritos sensíveis e cultos como ele.

A “leitura histórica” de Huysmans é categórica em afirmar que a decadência é a tônica daqueles tempos, de tal modo que se isolar apresenta-se como uma das possíveis formas de lidar (individualmente) com essa realidade. O refúgio do protagonista se torna um retiro voltado à transcendência, por assim dizer, e só não é ascético porque Des Esseintes busca nele um hedonismo refinado que não consegue mais encontrar em lugar algum. Seu isolamento parte da constatação, mais ou menos subjacente, de que nenhuma pessoa poderia estar à altura de sua vontade de arrebatamento sensorial e espiritual.

Se o mundo é sórdido e medíocre, Huysmans faz Des Esseintes construir em seu refúgio a antítese do mundo, pontilhando em todos os mínimos detalhes esse santuário da sinestesia. Cada sala é arquitetada para causar um certo conjunto de sensações: cheiros, cores, móveis, sons, posições dos objetos, luminosidade, tecidos, enfim, tudo o que compõem os espaços é meticulosamente concebido para despertar os sentidos e oferecer a Des Esseintes (e ao leitor, de um modo indireto) aquela hiperestesia e satisfação (filosófica, de algum modo) que ele não encontra nos domínios da decadente Paris.

Huysmans constrói uma prosa hermética, esmerada em cada uma das exegeses e pequenos (porém profundos) estudos que desdobra para dar verossimilhança aos refinamentos, afetações e pedantismos de Des Esseintes. Ele se debruça sonora e grandiloquentemente sobre a literatura teológica católica, sobre os clássicos romanos, sobre os quadros de Odilon Redon e Gustave Moreau, sobre os modernistas, sobre botânica, sobre perfumaria, sobre vinhos, sobre experiências eróticas, sobre pedras preciosas dentre vários outros artefatos. Esses momentos, que em boa medida constituem a ossatura do livro, estão entre as passagens mais viscerais e belas do romance.

Embora cada um desses elementos consiga atirar sobre si a aura de uma pequena obra-prima, eles são, como um todo, redimensionados quando considerados com relação ao grande universo artístico, estético e literário no qual Huysmans viveu. Conforme dito anteriormente, Às avessas destacou-se contra uma trajetória pregressa do escritor junto ao naturalismo. Após escrever diversos romances de acordo com alguns preceitos dessa escola, Huysmans passou a flertar com obras, escritores e ideias simbolistas e parnasianos, desviando-se, pouco a pouco, da estética naturalista. A aproximação a Mallarmé, d’Aurevilly, L’Isle-Adam, irmãos Goncourt e Verlaine é notória, e a soturna presença de Baudelaire se permeia espiritualmente em cada canto e aresta do romance.

Em face das mudanças e aproximações, Às avessas foi justamente o romance que estabeleceu o rompimento com o naturalismo de maneira reverberante, embora, a meu ver, não definitiva. Mais do que associar o nome do escritor ao decadentismo, o romance encerra uma série de permanências do naturalismo, a começar pela noção afiada da sociedade francesa construída por Huysmans, passando pelas constantes referências à tibieza do sangue da linhagem do protagonista, e terminando com o destino de Des Esseintes, que, ao isolar-se, não pode deixar de sentir-se melancólico e, ao que parece, meio “culpado” por sua deserção (quem sabe do engajamento preconizado por Zola…). Esse é um dos aspectos que faz do livro uma obra curiosa, pois embora esteja com todas as suas forças voltadas ao rompimento com o naturalismo e almejando vôos “mais livres”, Huysmans levou consigo a agudeza investigativa daquela escola, ao passo que sua obra consiga congregar de maneira muito interessante o melhor de dois mundos. A difícil amarração e costura dessas vontades e heranças, aliada ao hermetismo doentio de Huysmans, contribuíram não só para construir uma das mais singulares obras literárias, como também uma das mais iracundas críticas ao mundo e à mentalidade burgueses.