Um dos nomes mais conhecidos (senão o mais conhecido) da literatura norte-americana é sem dúvida William Faulkner. Ele é famoso, entre outras razões, por valer-se das inovações da literatura joyceana e das técnicas de “fluxo de consciência”, introduzindo-as, a seu modo, no cenário da literatura norte-americana, difundindo as técnicas de narração e complexificando sua produção literária.

Enquanto agonizo foi publicado em 1930 e é um dos livros onde é nítido as experimentações de Faulkner nesse sentido. O livro conta a história da agonia e da morte de Adie Bundren, uma senhora idosa, desde os seus momentos terminais até os ritos fúnebres e a odisséia póstuma que se constituiu para que seus desejos de sepultamento fossem satisfeitos.

A narração do livro é feita através das reminiscências e visões dos diversos personagens que participam da trama (Darl, Jewel, Cash, Dewey, Anse, Vardaman etc.), logo, a fragmentação do processo de contar a história torna a leitura de Enquanto agonizo um verdadeiro desafio ao leitor, que tem a hercúlea tarefa de unir os diferentes prismas narrativos para formar um fio condutor mais nítido.

Adie Bundren começa o livro agonizando, esperando pela iminente morte. Sua família, conhecendo o destino que aguarda a matriarca, começa os preparativos mesmo que ela ainda não esteja morta, sendo que um dos irmãos nem mesmo se preocupa em manter no sigilo a confecção do caixão onde o corpo da mãe irá repousar, incomodando os últimos momentos dela com os ruídos das batidas do martelo e o serrar da madeira.

Faulkner coloca em evidência o sofrimento que marca cada passo daquela família, desde a morte da mãe até a condição de adversidade em que se encontram, já que a vida rural não se apresenta nada promissora (um dos desdobramebtos da Crise de 29) e nem os irmãos parecem entrar em um consenso acerca das decisões a serem tomadas, nem com respeito ao corpo da mãe, nem no que tange a condução da vida na terra após a morte dela.

Cada personagem vê a questão a seu modo e o autor consegue colocar diferentes lógicas se entrechocando na cabeça do leitor e no palco onde a trama se passa. Um dos desejos de Adie Bundren é ser enterrado em uma terra longe de onde a família mora, de modo que os membros da família precisem se mobilizar para trasladar o corpo da mãe para o tal lugar. O problema é que, como bem Anse (o viúvo) percebe,

“Parece que não tem fim para o azar quando ele começa” (p. 194)

Faulkner atira a família Bundren num turbilhão de dramas que os fazem transitar próximos às raias da insanidade. Parecem haver forças cósmicas atuando no sentido de impedir que a família possa realizar a árdua tarefa de sepultar o corpo de Adie.

Faulkner penetra no universo da humilde família dos Bundren, e, longe de idealizá-la colocando-a como repositório de virtudes, explora-a como sofredora e vítima da perfídia do destino, mas não inocente como vítima pura e simples. Faulkner consegue fugir dos maniqueísmos e das dicotomias para colocar no centro da história a conflituosidade dos diferentes pontos de vista acerca dos eventos e como cada um deles procura estabelecer uma racionalidade que lhe permita entender e (sobre)viver à realidade que vivenciam.

Logo, o recurso narrativo de experimentação a partir de diversos prismas não se resuma à mera utilização de uma técnica mecanicamente, mas sim de uma forma diferencial de explorar a multiplicidade de visões acerca do real e como elas interagem de maneira conflituosa nos rumos da realidade. Ao lermos os diferentes capítulos (nomeados de acordo com o seu narrador [a narração é sempre em primeira pessoa, o detalhe é que a primeira pessoa não é sempre a mesma pessoa]) percebemos que não há como julgar as escolhas e atitudes dos personagens sem incorrer em infinitas subjetividades, há uma certa lógica que guia a cada uma delas de forma peculiar.

O sul americano, que ganhou cores e contornos ricos através da aclamada prosa de Faulkner, vê brotar histórias de vida tocantes e interessantes, que revelam dimensões diversas da vida e das peculiaridades da região, visto que quebram com certos estereótipos de atraso ou mesmo de preconceito com ela. A infausta saga da família Bundren, que é obrigada a suportar as provações mais diversas e acabrunhantes para a inglória tarefa de enterrar sua matriarca, reverbera amplamente na literatura mundial.

FAULKNER, William. Enquanto agonizo. Tradução de Wladir Dupont. Porto Alegre: L&PM, 2010.