É comum dividir a literatura em duas partes, bastante distintas e distantes entre si: a ficção e a não-ficção. É claro que muitas vezes a ficção se aproveita de fatos reais. Fatos históricos, via de regra: quantos livros não contam sobre alguma coisa que não-aconteceu-mas-aconteceu em um determinado momento da história, tentando caracterizá-lo com o máximo de verossimilhança possível? Por vezes, também, a não-ficção acaba por incorporar a ficção em alguns momentos: nada mais natural do que mesmo o autor mais meticuloso não consiga reconstruir os eventos à perfeição e crie alguns fatos, deixando que sua imaginação e seu raciocínio lógico preencham os buracos que a pesquisa ou a memória não conseguem suprir.

Alguns autores, porém, dão um passo além na direção da misturar os dois âmbitos, e criam uma terceira coisa, a qual não se pode dizer que é ficção, mas que não se pode acreditar como realidade. Jorge Luís Borges era mestre nisso, como nos mostra sua História Universal da Infâmia. São inúmeras biografias de criminosos, que misturam fato e ficção, chegando a apontar as referências bibliográficas ao fim do livro.

Mas, embora lhe deva muito, o conto que eu escolhi não é de Borges, mas de um de seus mais claros tributários: o iugoslavo Danilo Kiš, com o conto que dá nome ao livro Um túmulo para Boris Davidovitch. O livro, aliás, procede de modo semelhante ao do argentino, mas apela para aqueles que foram perseguidos pelos regimes comunistas – muitas vezes depois de terem ajudado a implementar ou a manter tais regimes.

O conto, como é de se esperar, narra a história de Boris Davidovitch, que teoricamente entraria para a história como Novski B. D. Novski: revolucionário bolchevique, que acabaria sendo condenado como traidor pelo país que ajudara a criar.

Fruto de um encontro quase inverossímil entre um judeu membro do exército do Czar – David Abramovitch – e da filha, também judia, de um médico que ajudou a tratar das feridas de David, quando este foi castigado por seus companheiros bêbados;  Novski tornar-se-ia importante revolucionário, tendo sido preso inúmeras vezes pelos czaristas, infiltrando-se nas cortes e se envolvendo em atividades terroristas. Depois da revolução ocuparia importantes cargos na recém-nascida URSS: ajudaria a subjugar o Turcomenistão, o Cazaquistão e a Estônia, participaria de missões diplomáticas que estabeleceriam as relações do novo país com a Coroa Inglesa. Depois disso é preso, acusado de espionagem a favor dos ingleses. É submetido a interrogatórios bastante cruéis até acabar executado.

Parece spoiler, eu sei, mas não é: além de ser o mote do livro, Kiš entrega esse desfecho desde o começo do conto. E o que é genial, na realidade, é justamente a construção da realidade na narrativa. A redação lembra, em muitos aspectos, um texto acadêmico. O texto é bastante seco e direto, não se submetendo a juízos de valor e nem entrando em aspectos emocionais. Mesmo os espaços da vida de Boris em que Kiš diz não ter encontrado fontes suficientes, não são preenchidos com suspeições ou largados a imaginação do leitor: o autor chega ao cúmulo de escrever, com todas as letras, que não quer isso – pois tornaria seu texto um simples conto, uma simples transformação literária.

Aliar essa perspectiva à violência da história que é contada ali torna tudo um tanto brutal. Ainda assim, porém, Kiš é um escritor bastante arguto, e seu estilo inscreve-se de maneira sutil, tornando esse horror um pouco mais assimilável – mas ainda não a ponto de ser naturalizado pelo leitor. Ninguém que leia a história vai sofrer junto do Boris Davidovitch, muito menos se afeiçoar a ele, mas tampouco o leitor consegue permanecer indiferente à violência que é forçado a encarar.