Existe uma tendência, já notada por Baudelaire, a se considerar a modernidade como uma automática rejeição de tudo aquilo que existiu anteriormente. Isso não necessariamente é verdade. No caso da poesia, talvez seja quase o oposto, já que alguns dos poetas de maior força unem características de novo e de tradicional. É o caso do polonês Czesław Miłosz.

Junto com Wysława Szymborska, Zbigniew Herbert e Tadeusz Różewicz, Miłosz é um dos pilares do verso polonês do século XX. Começou a publicar ainda no entre guerras, como membro da vanguarda catastrofista.

Foi apenas em 1945, ao fim da Segunda Guerra Mundial, que publicou sua coletânea ‘Ocalenie’ (Salvação; pronuncia-se ‘otsalénie’), na qual sofreu uma ‘virada classicizante’, assumindo seu compromisso com a representação da realidade e abandonando a arte da ruptura pura e simples. Essa realidade, porém, não deriva diretamente do mundo concreto, mas da memória.

Em Não mais, publicado na coleção Poetas do Mundo da editora da UNB, podem-se ver poemas de praticamente toda a trajetória de Miłosz, o que fornece a um leitor um panorama geral dessa e de outras problemáticas presentes em sua obra.

Os poemas, presentes em polonês e na tradução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza, são, em geral, breves e construídos cuidadosamente, com enorme atenção aos detalhes. Muitas vezes pode-se imaginar com tranquilidade os lugares e cenas evocadas, como em ‘Do outro lado’:

“Caindo agarrei-me aos trilhos

e o seu veludo na mão foi a última coisa na Terra

quando deslizei berrando: aaa aah

 

Não conseguia acreditar que assim como os outros, eu.

Depois segui os trilhos

na rua esburacada. Barracos de madeira,

ou um prédio capenga num campo de ervas daninhas,

hortas de batata cercadas de arame farpado.

E jogavam quase-cartas e havia cheiro de quase-repolho

E quase-vodca, quase-sujeira e quase-tempo.

…“

Outro aspecto que salta aos olhos é uma autoconsciência lancinante, que em momento algum abandona esse fazer poético, tão dependente da realidade quanto daquele a observa. Miłosz chega até mesmo ao meta-texto, inserindo reflexões acerca do poema dentro dele, como no final de ‘Anotado de manhã cedo: na Telegraph Avenue’:

“…

Alguém vai se perguntar se isso é verso ou prosa e qual a intenção de Miłosz destinando o fortuito à publicação.

Eu no entanto gostaria enfim de estar além do verso e da prosa, da intenção e da justificação.”

E, antes que eu me esqueça, vale destacar ainda o rico estudo introdutório feito pelos dois tradutores- nos qual dão a conhecer aspectos centrais da poética de Miłosz, relacionando-os com o mundo e a poesia que o rodeava.