Um dos maiores méritos de Dublinenses, e o que ironicamente foi visto como maior defeito à época da publicação, é a visão crua de James Joyce sobre a cidade. Mesmo que você, caro leitor, não seja um entusiasta da história irlandesa, poderá notar os clichês de suas vidas: a devoção católica, o alcoolismo, a educação escolar, o patriotismo efervescente perante a Inglaterra. Ainda que distante do estilo consagrado e ovacionado por todos os seguidores do modernismo, esse livro de contos tem passagens belíssimas e enredos simples que carregam em si muito sobre a vida irlandesa, muito do que Joyce renegava e amaldiçoava, mas que nunca conseguiu se desvencilhar.

Nessa edição de Contos Essenciais dentro do Especial James Joyce, resolvi fugir a regra de comentar sobre Os Mortos, conto icônico e amplamente conhecido, para dar espaço para alguns menores e muito interessantes. A Pensão a princípio parece extremamente deslocado de Dublinenses, surgindo como um excerto tragicômico desde sua abertura e preparando gradualmente a atenção do leitor até chegar ao seu enredo principal. Como um terreno a ser preparado, Joyce não deixa a informação fluir por si só e nem criar deduções por parte do leitor, o escritor quer levá-lo.

A abertura desse conto apresenta a Sra. Mooney, filha de um açougueiro, vivendo junto de seu marido. Quando o pai morre, o cônjuge enlouquece e corre atrás dela com um machado no meio da noite. Preocupada com a situação, pede ao padre desquite e a guarda dos filhos. Isso parece normal para os tempos atuais, tirando a palavra “desquite” que só é usada se você tem muitos anos (e não padeceu ainda) ou se você não tem ideia para traduzir o título de um filme com a Diane Keaton, mas Dublinenses se passa no começo do século XX e muitos tabus ainda existiam sobre a separação e, para não diminuir o cenário, maridos embriagados e violência doméstica são parte da cultura irlandesa.

Contudo, A Pensão trata também do matrimônio ou os bons frutos que ele rende. Após montar uma pensão e usufruir da ajuda dos filhos para manter o local, a Sra. Mooney nota que sua filha, Polly, faz sucesso com os inquilinos. Esse dom de despertar o interesse dos homens estimula motivos claros e obscuros para que a Sra. Mooney consiga um marido para a filha. Alguém bom e de boa família. O impasse vem quando a tal pensão torna-se alvo de fofocas e recebe títulos de má fé. Não há homem que queira casar com a filha da dona de um lugar tão sujo. O peso da responsabilidade está nos ombros de cada um: do aproveitador, da oferecida, da chantagista. O sexo fora consumado, isso é claro nas linhas do conto, só que a grande arma de Joyce é deixar em aberto se o medo e a pressão da sociedade dublinesca contribuirá na decisão de Doran – o (talvez) forçado pretendente – ou se a criação católica o influenciará na decisão.

Esse é o contraponto entre a modernidade do desquite da Sra. Mooney e sua visão antiquada de casamento: procurar marido bom para filha e se não conseguir, forçar aquele que violou a pureza dela a se comprometer. As pressões familiares antiquadas, tanto religiosas quanto, por assim dizer, comunitárias, são a força que carregam o conto. Aliada a grande ironia, se levarmos em conta que Joyce deixa o final em aberto, um suspense sobre qual será a decisão tomada por Doran e por Polly. Sabemos que ela chorou antes de ser chamada a sala para conhecer, ou não, seu marido, só não sabemos se porque estava sendo pressionada a se comprometer, por amar outra pessoa ou por temer a infelicidade.

Não existem grandes experimentos de linguagem ou uma crítica direta apontando os defeitos de uma sociedade decadente que não aprende com os erros, e os repete insistentemente, não importando as intenções de cada personagem. Joyce deixa claro em cada linha que Dublin sempre será um lugar sujo, mas não deixa explícita sua opinião se a cidade torna seu povo sujo ou se o contrário.