Muito listado entre as principais obras literárias do século XX, Um retrato do artista quando jovem (1916) tem duas traduções brasileiras até o momento, sendo a primeira de José Geraldo Vieira, lançada em 1945, e a segunda de Bernardina da Silveira Pinheiro (que também lançou o segundo Ulysses brasileiro), em 1992. Apesar da popularidade do texto, não comecei a ler James Joyce por esse livro, seu primeiro romance publicado, conhecido pela alta carga de elementos autobiográficos. Minha primeira imagem de Joyce veio do Ulysses (1922), sua obra mais consagrada, porém isso não me fez perder a vontade de ler seus textos anteriores, menos inovadores formalmente. Acabei, então, fazendo o percurso ao contrário: li o Ulysses,em que Stephen Dedalus aparece em sua maturidade, apesar de ainda ser jovem, e só depois li Um retrato…, em que temos o desenvolvimento de Stephen desde criança (talvez pequeno demais para ter memória) até a idade adulta, quando já começa a ser como um artista.

Na verdade Um retrato… se trata da reescrita de um romance anterior de Joyce chamado Stephen hero, inacabado e só lançado postumamente, em 1944. Esse romance se diferencia de sua reelaboração essencialmente pelo fato de não explorar muito o discurso indireto livre, essa forma de terceira pessoa em que temos forte influência discursiva da primeira pessoa. Em Um retrato… há mais exploração desse discurso de viés psicológico, com base nas visões de Stephen. Essa escolha de Joyce provavelmente foi o primeiro passo para o desenvolvimento de seu monólogo interior que atinge uma plenitude no Ulysses.

Quem conhecemos nesse romance, como já disse, é Stephen Dedalus, que talvez seja um alter ego do próprio Joyce ou uma personagem que vai além, especialmente se pensarmos também em sua presença no Ulysses. Ele nasce em uma família dominada pelo seu patriarca, Simon Dedalus, figura que permeia todo o pensamento de Stephen ao longo do enredo. Ao mesmo tempo em que seu pai aparece como alguém a ser respeitado, ele entra como ponto de conflito nas descobertas do jovem Stephen. Criado como católico, o protagonista ainda lida desde a infância com as controvérsias que vê entre a religião, a sociedade e o indivíduo.

Uma das cenas mais memoráveis é a discussão familiar na ceia de Natal, quando se debate o papel da Igreja na busca pela autonomia da Irlanda, na época dominada pelos ingleses, e na opinião pública a respeito de Parnell, político separatista que tinha acabado de morrer. Stephen cresce cada vez mais incrédulo em relação ao mundo, ainda que atormentado sempre pela culpa religiosa, e segue com sua consciência como irlandês em alta. Stephen parece estar preso em um labirinto que criou para si, assim como o Dédalo do mito grego.

Um retrato… parece trazer consigo muitas das questões presentes na literatura de Joyce bem como em muitas obras modernas da transição entre os séculos XIX e XX. Aqui o artista aparece nunca como “alienado”, ao contrário da visão burguesa mais comum do artista do fin-de-siècle, mas sim como alguém que vê a necessidade de fugir do status quo, de se reinventar à margem para poder entender melhor o que acontece ao seu redor. Joyce, assim como Stephen, é um irlandês, porém procura não se limitar só a essa definição. Na procura desse seu espaço, apesar de ver sua ligação com a pátria, deixa a Irlanda pelo continente em busca de outros mundos para si e para sua literatura.